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  • A citação popular no romance Fogo morto de José Lins do Rego
  • Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista

É uma característica da obra de José Lins do Rego o aproveitamento de textos pertinentes à Literatura Popular, nas suas múltiplas faces, desde simples máximas a poemas mais complexos, correntes na tradição oral de seu Estado. É que o autor identifica-se com a alma do povo, registrando - a em seus trabalhos com empenho semelhante ao do pesquisador na área: o de preservar o tesouro poético dos primitivos, um mundo colorido e movimentado pela participação de reis autoritários, de rainhas intrigantes, de princesas belas e sofridas, de pajens fiéis. São os heróis que fizeram a nossa história e que continuam a fazê-la porque somos todos nós, gente do povo, com nossos erros e virtudes, com as dificuldades que enfrentamos no dia-a-dia. Veste a túnica do rei o pai de família que impõe à filha sua vontade férrea. Esconde-se sob a égide da rainha a mãe que transita insegura entre obedecer ao marido e libertar a filha, ou favorecer um subalterno oprimido. Pensar em Literatura Popular como coisa de "iletrado" é desconhecer o sentido da palavra povo. Literatura Popular vale como bem partilhado por todos. Não existe um só dono porque todos somos seus donos, nem um só autor porque cabe a todos nós a autoria.

Identificar e indicar as origens, comentar e interpretar-lhes a inclusão na obra eis o que pretendemos fazer com as citações populares de Fogo Morto. No exame de uma citação, convém distinguir a relação en tre dois participantes efetivos: o citado, enunciado aproveitado de outro anterior e o citante, aquele que faz a citação. No nível da estruturação textual, considere-se a nomenclatura texto citante que, no nosso caso específico, será Fogo Morto e texto citado, correspondente à intertextualidade da obra em questão. [End Page 97]

Existem, em Fogo Morto, dois tipos fundamentais de textos populares citados: originais integrados à obra, sem aspas, nem itálico e originais, destacados do texto citante e grafados em itálico. No primeiro caso, têm-se os provérbios e frases feitas, como o seguinte: -Seu Laurentino -foi ele (= José Amaro) dizendo- um homem vale pelo que é não pelo que tem" (FM 52). José Amaro cita um provérbio popular, aproveitando-se dele como se fosse autor. A verdade é que não é necessário indicar a fonte por se tratar de conhecimento partilhado por todos. Vejam-se outros exemplos:

Quero lá saber de cuidado de mulher velha! Cavalo velho, capim novo, comadre Sinhá.

(FM 58)

É aquilo mesmo, quer chova, quer faça sol.

(FM 74)

Enunciados dessa ordem, conhecidos e repetidos por uma coletividade "gozam o privilégio da intangibilidade: por essência não podem ser resumidos, nem reformulados, constituem a própria palavra captada em sua fonte" (Maingueneau 100-1). Isto responde pela ausência das aspas e do itálico ao serem inseridos na obra em questão.

O segundo grupo de citação popular compreende textos pertinentes ao Cancioneiro e Romanceiro tradicional, cantados, principalmente, por José Passarinho, "velho negro que vivia constantemente embriagado" (FM 93) e que, "quando não bebia, dava para cantar" (FM 114). Foi precisamente por cantar como passarinho que o negro adotara o apelido. Aliás, a presença do canto é uma constante na obra. Há, além de pessoas cantando, inúmeras referências a canto de pássaros: "O canário da biqueira cantava forte"... (FM 152); "A patativa estalava na manhã feliz o seu canto de alegria para os infelizes da cadeia do Pilar" (FM 380).

O canto tinha o dom de alegrar, atrair, animar. José Passarinho era um desafortunado: "Tinha os olhos vermelhos, um trapo imundo como roupa, os pés comidos de frieira" (FM 93), mas era feliz porque cantava. E "cantava porque era feliz, porque o mundo para ele não tinha mágoa para lhe dar" (FM 111). Essa forma de encarar o canto está muito ligada à tradição popular que diz "quem canta seus...

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