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  • Do medo à emoção em O Bazar Alemão de Helena Marques
  • Monica Rector

É que há nódoas na consciência pessoal ou colectiva que jamais poderão ser branqueadas.

O Bazar Alemão

Funchal, a terra natal de Helena Marques, faz-se presente em vários de seus romances a começar com a primeira de suas obras, O último cais (1992) até a presente obra, O Bazar Alemão (2010). Neste período de quase vinte anos, as raízes de sua identidade tornaram-se mais fortes e precisas, mostrando que a identidade é parte integrante do ser humano e que a história e as memórias não se constroem somente a partir da terra firme, do continente, mas também da periferia, da geografia da ilha – um microcosmo que representa toda a grandeza de uma pátria. Se em O último cais, Funchal estava isolado no século XIX quanto à comunicação e às últimas notícias que só chegavam quando um navio aportava no cais, em O Bazar Alemão, as notícias chegam por vias intrincadas, desde o rádio por meio da BBC de Londres, dos jornais locais, mas sobretudo por meio do diz-que-diz-que, circulando entre as pessoas por meio de cochichos e silêncios. Funchal, que sempre servira como um elo unificador, manifesta-se nesta obra como um potencial destruidor de sonhos e realidades desencadeado por um poder europeu distante.

A obra inicia-se em junho de 1936 e a narrativa desenvolve-se entre esta data e 1939. O governo do III Reich de Adolf Hitler promulga, em setembro de 1935, a Lei da Proteção do Sangue Alemão e da Honra Alemã, em defesa do anti-semitismo – uma ideologia de aversão cultural, étnica e social aos judeus. Esta lei desencadeou uma perseguição sistemática contra os judeus, além de outras minorias como Marques aponta, ultrapassando as fronteiras alemães e infitrando-se em países estrangeiros: [End Page 213] “as perseguições não atingem apenas judeus, mas igualmente ciganos, socialistas, homossexuais …” (102-3). Na ilha da Madeira, muitos alemães-judaicos, residentes e estabelecidos na comunidade há muito tempo, de repente veem-se diante de um problema inusitado, questionados quanto aos seus antecedentes “religiosos”, para não dizer “raciais”. Alemães eram muitas vezes confundidos com nazistas. Sem que sua cidadania portuguesa fosse levada em consideração, passam a ser discriminados e intimidados por compatriotas seus, por meio de pressões, chantagens e ameaças, mas sobretudo por meio de denúncias em forma de cartas enviadas diretamente às fontes em Berlim. Há uma reviravolta na vida pessoal e profissional destes indivíduos, que precisam repensar suas vidas sem terem nada de concreto em que se calcar, a não ser o medo, a incerteza e a ameaça de um futuro desconhecido e incerto, mas certamente sinistro. Marques tenta recuperar, por meio dos arquivos escritos e orais, uma fase da história portuguesa, pouco abordada até agora e reavivar a memória adormecida.

O objetivo deste artigo é mostrar como Helena Marques “mexe” com os sentimentos do leitor, transmitindo a angústia das personagens, o que vai se transformando em medo, terror para alguns, e suscita um mal-estar no leitor que o acompanha pelo menos através de três quartos da obra a dentro (são dez capítulos), diluindo-se no final em emoção transmitida pelas duas personagens principais, Lisbeth e Katherine, e dando uma esperança com uma saída positiva ou uma neutralidade aos impasses por meio do amor. Nesta trajetória, a palavra “silêncio” predomina (27, 29, 46, 181). Contém o “presságio” e a “premonição”. Esta “angústia” dá lugar ao “medo calado”, tomando a proporção de “temor” e “terror”.

Talvez este mal-estar tenha se manifestado de forma mais aguda em mim, como leitora, por ter vivido uma situação análoga. Filha de alemães, pai judeu e mãe protestante, meus pais presssentiram o porvir do desencadeamento das ações de Hitler e resolveram emigrar. A África do Sul e o Brasil eram os países mais baratos...

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