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  • E agora que estou no futuro
  • Francesca Cricelli (bio)

Escolho uma idade à minha medida.Guia-nos o sul, com redemoinhos de pó sobre a estepe;Renques, daninhos, pragas de gafanhotos,As cintilações faiscantes das ferraduras polidas,Tudo profetizava—visõesDe monge—que eu iria perecer.Peguei no destino, atei-o à sela;E agora que estou no futuro, permaneçoHirto nos estribos como uma criança.

—Arsenii Tarkovski, "8 ícones"

Tenho trinta e sete anos. Com essa idade minha mãe já tinha uma filha de quinze, eu não tenho filhos. Lembro-me bem daquele aniversário, com quinze anos quis alisar os cabelos longos e encaracolados, usei um batom marrom escuro da Dior, ganhei minhas primeiras maquiagens que vieram numa caixa de vime dourado com tampa verde. Batom, blush, lápis de olho e rímel acomodados por ela entre cds de Pink Floyd, Beatles e The Who. Naquela noite eu, ela e meu pai fomos a um restaurante cujo dono francês reinventava pratos tradicionais do sudeste asiático. Sei que uma iguaria temperada com tamarindo e cidreira era meu prato favorito, mas já não me lembro mais o que era. Dos onze aos dezoito anos me criei em Kuala Lumpur. Há uma foto dessa noite em algum lugar na casa da minha mãe, o papel desgastado pelo tempo retém o excesso de flash e o sorriso composto de quem queria ser adulta antes da hora. Em poucos anos passamos de imigrantes italianos de terceira geração, que saíram do Brasil em pleno rebuliço da era Collor para tentar a vida na Itália, para expatriados durante o boom econômico dos chamados tigres do sudeste asiático. O mesmo movimento pode parecer outro e novo a partir de uma conta bancária menos esguia e um contrato de trabalho estável, um colégio de elite particular cuja mensalidade é [End Page 79] uma porção do salário concedido por uma multinacional, o mundo tende a recobrir os movimentos migratórios com camadas distintas—tudo depende da perspectiva de uma narrativa.

Há alguns dias, sentada na sala de espera de um hospital no interior de São Paulo, eu aguardava minha vez para mostrar minhas entranhas, glândulas, útero e vagina. A médica diz que seria bom congelar óvulos. Você quer ter filhos? Pense no congelamento, te passo o contato de um colega, sem compromisso, faça uma consulta. Dar o corpo para outro ser se encarnar em mim é muito mais do que uma questão de criopreservação de oócitos. Mas escritora pensa? Indagou o imagiologista. Escritora escreve para pensar, disse, comecei esse texto na sala de espera, em meu telefone, será que o senhor teme que sua filha seja escritora? Mas o seu pai o que disse sobre isso? Nem sempre se tem tempo ou disposição para um aval de um genitor. Quando os meus anos eram quinze, e havia em casa outro sentido de enlace familiar, não sei se já se congelavam óvulos, mas sei que o corpo da mulher vivia sob a circunscrição técnica do olhar masculino—mesmo quando o olho era o da mulher. A roupa que se usava, os homens que se frequentava, a carreira e a obrigação da maternidade, minha filha se você for diplomata que homem vai querer casar contigo—você vai trabalhar e ele vai fazer o quê? Mais de vinte anos depois e o controle de qualidade dos órgãos para que se possa ser uma boa chocadeira continua uma constante.

Gosto da chuva grossa e quente que desaba do céu aqui na Flórida, essa humidade me lembra Kuala Lumpur.

Sou filha de uma gravidez não planejada, fruto do encontro—quero crer passional—entre dois jovens que talvez estivessem perdidos e à deriva de si. Engravidar para mim, por muitos anos, só podia acontecer acidentalmente, por um descuido, nunca por planejamento. E apesar de todo o amor assegurado e recebido, pairava no ar o sacrifício que haviam feito para trazer-me ao mundo. É melhor esperar. Teria minha mãe hesitado levar a termo essa gravidez? Ela escreveu um poema...

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