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  • Visão camaleoaO segredo latino para viver na outra América
  • Laís Lara Vanin (bio)
Keywords

brasileiros, latinos, Estados Unidos, imigrantes

Todas las voces todas Todas las manos todas Toda la sangre puede, ser canción en el viento Canta conmigo canta, hermano americano Libera tu esperanza con un grito en la voz

—Mercedes Sosa

Oi, mãe!

Antes de qualquer coisa, saudade.

Saudade do seu colo, das nossas horas na cozinha.

Saudade do seu café.

Humm. Só de lembrar, meu nariz se dilatou e comecei a salivar.

O café americano é muito esquisito. Na verdade, até aprendi a gostar, mas não há nada como o que você faz todos os dias depois do almoço. Acho que aqui se bebe muito mais café do que no Brasil. Há infinitas variedades de grãos e estilos, mas nunca vi café para ser tão ralo como o deles, viu!

Saudade também das nossas tardes de domingo, quando ficávamos costurando as roupas novas que colocaríamos na mala que se mudaria comigo para os Estados Unidos.

Será que você consegue imaginar o tamanho da frustação que tenho sentido quando tento usá-las e nenhuma fecha? Pois é, acabei engordando tudo de novo como você bem viu, na nossa última vídeo-chamada, fazendo questão de frisar que eu estava com um papinho visível abaixo do queixo. Não engordei porque quis. Aqui tudo é tão corrido e os carboidratos são tão baratos que acabo cedendo à pizza de pepperoni (ai, que saudade da de calabresa) mais do que duas vezes por semana e ao chocolate mais do que três vezes ao dia. Fora isso, estou entupida de remédios. O psiquiatra dobrou minha dose e o anticoncepcional daqui me incha muito.

Saudade, mãe—simples assim. [End Page 103]

Gostou de receber o envelope em casa? O moço do Post Office me disse que demoraria mais ou menos um mês para essa cartinha sair de Bloomington e chegar ao Brasil. Fico pensando em quantas mãos e fronteiras esse envelope teve que passar para chegar aí são e salvo. Lembra-se de quando eu paquerava o Sansão por cartas? Era tão gostoso receber o envelope que ele mandava cheio de selos e com o papel perfumado! Tentei fazer o mesmo com esta cartinha, já que preferi o selo em detrimento do arroba. Você está sentindo o perfume que borrifei neste papel? Está reconhecendo o cheirinho? É aquele Linda, do Boticário, que você me deu antes da viagem.

Faz muito tempo que quero te escrever. O que mais quero conversar com você não funciona pelo Skype, afinal você bem sabe que eu não sou do tipo combativa. Se não fosse pela intermediação da distância, da escrita, do papel, dos selos e da viagem do envelope, eu iria guardar muitos (outros) segredos de você.

O inverno aqui is officially over, mas, como você deve imaginar, ainda está frio. Acho que já faz uns cinco meses que não abro as janelas de casa, mas pelo menos agora temos mais horas de luz. Aquele negócio de escurecer às 4 da tarde em dezembro é muito deprimente. Acredita que ainda me lembro do fim do inverno passado quando pude, finalmente, abrir as windows, sentar no porch e ler um livrinho ao ar livre? Estava tão gostoso … Não vejo a hora de sentir isso de novo. Ah, outra coisa bastante desagradável é que durante o fall-winter eu fico com uma cor desbotada. Não fico branca, muito menos pretinha. Fico marrom-pálida-ressequida. A propósito, esses dias um americano olhou nos meus quadris, na minha pele, no meu nariz e soltou "You are such a beautiful black woman!" Apesar da inconveniência, eu gostei de ser vista assim. Odiava esse negócio de ser mulata ou cor de jambo no Brasil. Ficar nesse entre-lugar era muito ruim. Você se lembra de quando ninguém acreditava que você era minha mãe só porque você era loira e eu de pele escura, com o cabelo armado?

Viver no estrangeiro tem sido uma aventura...

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