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  • Representações da morte no cancioneiro infantil e juvenil (oral e escrito) português
  • Carlos Nogueira

No mundo ocidental, são muitas as vozes que nos vão lembrando, de tempos a tempos, que já não sabemos encarar a morte com frontalidade e dignidade. Assumiu-se que falar da morte é produzir uma dor ou um mal-estar que colidem com os valores da nossa sociedade, cada vez mais voltada para o culto da beleza e da eterna juventude. Até sensivelmente às décadas de 70 ou 80 do século passado, a sociedade portuguesa, sobretudo a mais rural, não escondia dos mais novos as doenças, o envelhecimento e a morte dos entes queridos, e o cancioneiro infantil e juvenil era uma das grandes expressões e uma das fontes de todos estes temas. Hoje, estas são questões praticamente silenciadas, dir-se-ia até proibidas, e por isso muitas crianças são educadas sem o conhecimento da morte. Partindo destes pressupostos, abordaremos neste artigo a questão da morte na poesia oral e tradicional infantil portuguesa moderna e contemporânea. Veremos, em particular, se a morte aparece mais como personagem ou mais como acontecimento, refletiremos sobre os seus tipos e as suas incidências semânticas, simbólicas e pragmáticas, e discutiremos se vale a pena trazer estes textos para o contexto educativo.

No atual cancioneiro oral infantil português, ao que sabemos, não há já vestígios de textos em que a morte é essa personagem complexa e enigmática que sempre fez parte de mitos, lendas e contos tradicionais; e a morte como acontecimento (função cardinal ou microevento) também não é propriamente muito contemplada. Mas isto não significa que as crianças portuguesas não podem ter qualquer contato com poemas tradicionais em que a morte cumpre a sua função de ato de linguagem que cria significados para a vida individual e da sociedade. Esta carência pode ser em parte suprida através da leitura e do aproveitamento didático de textos literários orais, recolhidos e editados por autores e estudiosos da literatura infantil e juvenil portuguesa, como os que analisamos neste artigo. [End Page 85]

Textos, dirigidos em especial ao leitor infantil e juvenil, de escritores como Sophia de Mello Breyner e de António Mota dizem-nos que assumir e pensar a morte pode ser essencial para a construção de uma vida mais livre e integral, despojada de algumas das obsessões que nos afastam de valores fundamentais como a dignidade, a solidariedade e o amor (Nogueira, "Death" 93-111). Encobrir e simplificar o desaparecimento de alguém a uma criança é promover o que, em linguagem antropológica e sociológica, se designa por "morte social." A vida de quem morre deixa de poder ser significativa para os vivos, e em especial para as crianças e os jovens, cujo universo de referências fica necessariamente empobrecido.

Hoje, a criança é protegida de tudo o que se relaciona com a verdade e as imediações da morte. Os avós padecem e morrem sozinhos num hospital sem ver os netos, em casa não se fala de morte porque dizer a morte é produzi-la. De um tempo em que os mais novos eram afastados dos hospitais por receio de contágios, passou-se, numa época em que a ciência reduziu os riscos de transmissão de doenças, ao apagamento da morte da visão e da memória infantis.

Janet Goodall observa que esta atitude contraria a vontade das crianças, que, regra geral, não querem ser excluídas dos rituais que acompanham a morte de um familiar ou amigo. A autora não só tem concluído que a exclusão é mais perturbadora do que a inclusão, e que "Parents and children belong together, even (perhaps particularly) when one of them is in hospital" (232-33), como também se percebe cada vez mais que "A bright child, or one that has endured much, will mature more quickly, as experience accelerates understanding" (235). Não falar da morte e da sua irredutibilidade quando alguém est...

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