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  • "Eparrei! Maleme pra ele, minha mãe!"
  • Renato Alvim
Palavras chave

African diaspora/diáspora africana, Brazilian literature/literatura brasileira, Dias Gomes, inter-American literature/literatura interamericana, O pagador de promessas

Resposta 1 a "The Place of the Forge: The African Diaspora, History, and Comparative Literature"

A questão da diáspora africana e sua pouca visibilidade ou mesmo presença limitada no cânone literário pode ser lida por uma alegoria representada por Dias Gomes em O pagador de promessas. Nessa consagrada peça teatral vertida no filme coroado com a Palma de Ouro de Cannes em 1962, o protagonista vê-se impedido de cumprir uma promessa de levar uma cruz ao altar de uma igreja de Santa Bárbara pelo fato de o padre considerar sua promessa—feita a Iansã em um terreiro de umbanda—uma heresia. A trama gira em torno das consequências da intransigência do padre em relação ao sincretismo do protagonista, Zé do Burro. A confusão "natural" na cabeça de Zé do Burro aponta para a fusão que se estabelece no funcionamento de um processo autêntico de constituição da diversidade brasileira (o sincretismo religioso é resultante e articulador da sobrevivência de práticas diversas, porém sem razão de serem auto-excludentes)—daí o espanto de todos os personagens, tipos, figurantes e representantes de variadas facetas da cultura brasileira em relação à intransigência do padre. Não é senão uma questão de tempo até que a promessa seja cumprida, porém o preço é a vida do protagonista, levado ao altar sobre a mesma cruz que carregara por muitas léguas desde o interior da Bahia até a capital, a cidade de Salvador. A alegoria da intransigência do padre revela seu movimento em direção contrária ao processo natural de fusão (forging) que vem se constituindo o que se conhece como cultura brasileira até os dias de hoje.

De maneira semelhante imaginamos que relegar-se a uma mínima fatia do cânone literário a contribuição da diáspora afro-americana (representada em sua totalidade por uma abrangente literatura afrodescendente nas Américas) representa um movimento contrário ao reconhecimento processo de formação da identidade do que se constitui hoje a literatura nas e das Américas. Em muito se perde ao não se considerar uma articulação do conjunto literário—possibilitada por estudos em literatura comparada, por exemplo—atravessado por tantos marcadores de identidade (como elementos culturais, históricos, sociais, econômicos etc.) de que comungam as Américas.

Como na referida obra de Gomes, é preciso articular-se um movimento que questione e repudie resistências persistentes que forçam um hiato, e não se dirijam a um processo de fusão ou comunhão de traços identificatórios na produção literária da diáspora afro-americana. Na obra de Gomes, foi a população, e não um gesto do líder religioso, o que levou a cabo o cumprimento da promessa do protagonista, legitimando o sincretismo em sua autenticidade; assim, imaginamos que não surgirá necessariamente um convite ao cânone como gesto de inclusão literária da diáspora afro-americana, senão seu caminho passo a passo como resultado da produção incisiva de autores, da multiplicação de leitores e da consequente elaboração de pesquisa que levem em conta os tantos aspectos interdisciplinares que criam a interseção inerente a essa diáspora. [End Page 237]

Ao notar a dificuldade que enfrentará o protagonista para pagar sua promessa, uma das personagens, Minha Tia, baiana, vendedora de iguarias nos arredores da igreja, saúda e pede proteção de Iansã: "Eparrei! Maleme pra ele, minha mãe!" (Gomes 110). "Eparrei" e "Maleme" são termos de origem ioruba que significam, respectivamente, "olá" e "proteção". Sua fala aponta para a recepção que Zé do Burro recebe dos habitantes da capital baiana, daí a necessidade de ela pedir a bênção a Iansã. Minha Tia dá boas vindas (reconhecendo a presença e pedindo guarida) àquele que tenta trazer ao centro da igreja...

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