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  • A centralidade das margens literárias:Carolina Maria de Jesus e Paulo Lins
  • Daniela Birman

Introdução

O que podemos entender por "margem" e, mais especificamente, "margem literária"? Propomos aqui pensar as margens–em sua relação com o campo literário brasileiro, seus núcleos e princípios organizadores–em termos de implicação mútua e reconfiguração. Mesmo considerando essa característica (implicação mútua, indissociável do centro em sua instabilidade e heterogeneidade) bastante evidente, julgamos que o exame focado nessa ligação poderá ser produtivo para refletirmos sobre certos embates relativos à questão da autoria, à oposição documento/literatura e à relação entre ética e estética em escritores originados das periferias e favelas brasileiras. Ao propormos a análise a partir dessa perspectiva, questionamos também determinado emprego da noção de margem, associado historicamente à compreensão do urbano por meio de oposições binárias entre seus espaços e configurações sociais, políticas e raciais. Desse modo, o enfoque aqui proposto ajudará, acreditamos, a questionar a leitura dessa posição fronteiriça em termos de simples oposição, separação e/ou exclusão de determinado centro.

Margem e centro surgem aqui como interligados de dois modos em especial. Por um lado, a marginalidade literária se mostra potente em sua capaci-dade de desestabilização de noções por vezes naturalizadas no domínio literário–tais como a de autoria, literatura, autonomia da obra–mas nem por isso isentas de questionamento, mesmo quando ligadas a livros e autores reconhecidos e/ou pertencentes à tradição. Por outro lado, identificamos a extensão de estratégias, hierarquizações e divisões típicas do campo literário institucionalizado (incluindo aí as categorias de mercado editorial e academia) em produções e publicações entendidas como relacionadas a temas e/ou autores localizados fora do centro literário. A nosso ver, essa identificação [End Page 361] não desfaz a caracterização marginal dessas publicações, mas antes reforça a ligação e constante refundação dos princípios hegemônicos sobre estes outros espaços. Interessa-nos, assim, identificar essa dinâmica de desestabilização e problematização de noções e valores do centro, assim como as respostas e refundações deste, sem com isso afirmar nem um caminho sem saída e sempre o mesmo, em que os critérios nucleares do campo acabam por se impor, nem uma potência transgressora supostamente pura e descolada de forças, princípios e reações do campo hegemônico.

Desse modo, em vez de pensarmos as margens literárias como excluídas do mercado editorial, da crítica acadêmica, do cânone ou da tradição, sugerimos utilizar criticamente a noção de marginalidade para explorá-la em suas diversas associações com essas práticas e instituições. Ao fazermos isso, consideramos que margens e centro não estão isolados entre si, mas inteiramente perpassados por possibilidades e formas de ligação, problematização, vinculação. Esta proposta será apresentada a partir da discussão de dois casos bastante específicos de escritores considerados, de modo geral, como integrantes de certa "literatura marginal": Carolina Maria de Jesus e Paulo Lins.

Carolina Maria de Jesus: A Construção de uma autoria

Carolina Maria de Jesus (1914-1977) tem trajetória exemplar na nossa história literária e social, em vários sentidos. Certamente uma de nossas primeiras escritoras a escrever da condição (social, cultural, histórica, racial) marginalizada que ocupava–a favela do Canindé, na São Paulo dos anos 50 –, ela se tornou best-seller com o diário Quarto de despejo (1960), título cujo breve exame permite que problematizemos a noção de autoria e questionemos a oposição literatura/documento a partir da qual foi conformado em diversas apresentações da obra, desde o seu lançamento, orientando sua recepção.

Nascida em Sacramento, interior de Minas Gerais, a escritora negra tem trajetória similar à de muitos outros descendentes de escravos libertos. Após trabalhar com sua mãe em diversos municípios...

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