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  • Em busca de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo:limitações e implicações de uma hipótese
  • Gabriel Mordoch

Era judeu marrano? Não se sabe, nunca se virá, porventura, a averiguar.

(Ribeiro 212)

introdução

A Peregrinação (Lisboa, 1614) de Fernão Mendes Pinto (1510?-1583) é um dos textos mais curiosos e polêmicos da literatura portuguesa de todos os tempos. Essa obra monumental de cunho autobiográfico se inscreve no contexto da expansão imperial portuguesa no Oriente durante o século xvi, pois narra as duas décadas (1537-1558) em que seu autor-narrador-protagonista (ou "persona literária") perambulou pelo Oceano Índico, alcançando lugares nunca antes navegados por tripulações portuguesas. Mendes Pinto redigiu a Peregrinação entre 1569 e 1578 (Catz, A sátira social 65), já retornado a sua terra natal. Porém, a obra só veio a ser publicada em 1614, em Lisboa, na casa editorial do impressor flamengo Pedro Crasbeeck, numa edição de trezentos e três fólios divididos em duzentos e vinte e seis capítulos. Até hoje a crítica em torno da Peregrinação não foi capaz de explicar definitivamente porque a obra tardou aproximadamente trinta anos para ser publicada. Cogita-se que Mendes Pinto teve medo de ver sua obra publicada em vida devido a possíveis censuras e punições dos aparatos de imposição da ortodoxia católica (Catz, A sátira social 70; Lima 17). Não obstante, a edição lançada em 1614 apareceu com as devidas licenças do Santo Ofício, Ordinário e Paço. Uma vez que o manuscrito original se perdeu, não sabemos em que medida ele foi alterado durante os anos que antecederam a obtenção das licenças e a publicação oficial. De qualquer forma, o exíto da Peregrinação se verifica não somente através de suas várias reedições e republicações, mas também em [End Page 305] suas traduções e adaptações a diversas línguas.1 Além disso, o sucesso da obra também fica patente através do caloroso debate crítico desenvolvido em torno de uma narrativa que, apesar de seu caráter supostamente autobiográfico, muitas vezes beira o fantástico e aponta para a ficção.2 Passados mais de quatro século de sua publicação oficial, a Peregrinação permanece intrigando e confundindo leitores, desafiando críticos, gerando polêmicas e repelindo interpretações essencialistas.

Em um primeiro momento a fortuna crítica da Peregrinação preocupou-se principalmente com questões relativas à veracidade, rigor e fidelidade histórica e biográfica.3 No entanto, a crítica mais recente vem se afastado da abordagem documental e histórica, tendendo a se preocupar menos com a busca da verdade/veracidade na obra de Mendes Pinto do que com sua complexidade narrativa, sofisticação artística e seu caráter multifacetado. Ao mesmo tempo, a crítica atual tende a concordar que a Peregrinação é um texto que não permite abordagens globais ou interpretações totalizantes (Loureiro 245; Sousa 17; Lima 187).

Desde a publicação dos estudos de Christóvam Ayres de Magalhães Sepúlveda (1857-1930), lançados em 1904 e 1906, a fortuna crítica em torno da Peregrinação vem debatendo uma questão adicional: a possibilidade de Fernão Mendes Pinto haver sido cristão-novo, isto é, descendente de judeus convertidos em massa ao catolicismo devido ao decreto de expulsão promulgado pelo rei Manuel I em 1496. Muito embora parte dos críticos concorde que a origem judaica do autor da Peregrinação não é tão relevante quanto os significados e a magnitude da obra em si e por si (Margarido, La multiplicité des sens 161; Castro x; xxxvi), outros sugerem que a hipótese de um Fernão Mendes Pinto cristão-novo "pode ajudar a compreender melhor o espírito do autor e o conteúdo da obra, a clarificar até certos pontos da sua vida" (Vale 13-14). Apesar de permanecer dividida quanto à questão, inclusive porque n...

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