University of Texas Press
  • JLAG Perspectives: Vida, Conhecimento e Território: uma geobiografia do Carlos Walter Porto-Gonçalves / Life, Knowledge and Territory: A Geobiography of Carlos Walter Porto-Gonçalves

Introdução

Carlos Walter Porto-Gonçalves, geógrafo militante comprometido por vocação e ação com os territórios em conflito, compartilha as ações de seus caminhos que o marcou profundamente para que sua carreira seja a que for, a escolha de geografia crítica ao lado da estrada das comunidades e movimentos sociais. Porto-Gonçalves cresceu nos subúrbios do Rio de Janeiro e explica como os primeiros encontros com as famílias indígenas Goytacazes, pescadores Lagoa Feia, influenciaria a sua prática com seringueiros no Acre:

Minha cumplicidade com aquela gente que defendia suas condições de produção/reprodução da vida com seus sentidos próprios me levou ao mesmo tempo a me envolver com a causa ambientalista que, por seu lado, me levaria a sérios problemas com a esquerda marxista tradicional.

Ele enfatiza a necessidade de falar sobre uma Geobiografía porque destaca a importância de lugares e pessoas onde encontrar-nos com as ideias que pensamos. As nossas ideias são importantes, mas apenas em referência às pessoas e aos territórios em quais eles estão conectados.

Além disso, ele conta a história de sua convicção na prática política como ativista comprometido e sua relação com a pesquisa-ação. Ele fala da desterritorialização como experiência pessoal e como a definição de suas pesquisas teóricas:

Dessa forma, o tema do despojo de território me marcou o corpo. Eu não consigo ficar quieto diante desses processos de despojo que acontecem de maneira generalizada. Isso me dói profundamente. Essas violências eu sofro e as elaboro intelectualmente. Essas cenas me comovem. Um exemplo disso vivenciei com um camponês de nome Cristóforo, de Cobija, no Departamento de Pando, Bolívia, onde trabalhava em inícios dos anos 1990, assessorando a luta para demarcar terras com os seringueiros. [End Page 105]

E reflete sobre a questão de dignidade como base de todas as lutas para a vida, porque com a desterritorialização a humanidade fica mais pobre:

a dignidade é um valor muito forte. A luta pela vida, pela dignidade e pelo território é a consignação que foi trazida ao debate por duas Grandes Marchas, ambas de 1990, na Bolívia e no Equador. A dignidade significa respeitar o outro como outro. É dizer, me respeite como digno, respeite a maneira como sou como um modo digno de sentir/pensar/agir e, nesse sentido digo, a dignidade é a condição para a verdadeira igualdade, para a verdadeira fraternidade, para a verdadeira liberdade. Mas o valor fundamental é a dignidade.

Carlos Walter nos convida a sua metodologia teórica e prática e como usar a teoria para o diálogo com as práticas dos territórios, o conhecimento deve ser sempre inscrito na vida: “A questão teórica aparece no meu trabalho como se fosse uma bengala, um bastão em que me apoio para que a vida em processo fale.”

E, finalmente, ele nos transmita seu horizonte utópico político de, “construir uma sociedade em que as pessoas possam ser amigas. A Amizade, essa categoria fundamental, ética, política, filosófica. Vivemos numa sociedade que impede que as pessoas sejam amigas.”

Entrevista

Laura Sarmiento:

Pronto, Carlos, você está no ar. Fale um pouco de sua biografia.

Carlos Walter Porto-Gonçalves:

Diante dessa pergunta, sempre proponho um deslocamento. Em vez de biografia, sugiro falar de geobiografia. O que seria isso? Normalmente quando se fala em biografia, se faz referência à sua trajetória no tempo. Entretanto, o interessante é quando a pessoa começa a fazer sua biografia, ela começa a falar dos lugares onde ela esteve em determinado momento de sua vida. Então, o que se está fazendo é uma geobiografia, quando enfatizamos o lugar onde entramos contato com uma determinada ideia sempre com determinada pessoa em determinado momento-lugar. Na ideia de biografia há uma anulação do espaço pelo tempo, pois fazer biografia é nos colocar numa linha do tempo. É possível fazer uma cartografia dessa trajetória. No campo da Geografia tem uma disciplina chamada de Biogeografia e o que eu quero propor é uma Geobiografia: inverter a posição do Geo e fazer nossa trajetória a partir dos lugares, esse me parece o segredo. Entretanto, observemos que não se trata de privilegiar o espaço e suprimir o tempo, mas sim de ver que a matéria, no caso o corpo que temos para estar no mundo, é a uma só vez espaço-tempo. Não estamos no espaço, mas sim somos espaço, somos espaço-tempo. O espaço é constituído pela relação entre os corpos, daí não ter sentido falar de sociedade e espaço, pois sociedade é espaço em devir (tempo). É necessário superar o kantismo que vê o espaço e o tempo como intuições a priori e não condições da matéria.

LS:

Por que dedicastes tua vida a fazer militância no que acreditas, a colocar o corpo nos lugares onde o colocas? Qual é tua história? [End Page 106]

CWPG:

Desde o ponto de vista da convicção de minhas práticas políticas como ativista é uma coisa um pouco tardia. Tem a ver com uma história de vida muito própria, como é a vida de cada um. Antes dessa entrevista, estive na Rádio Nacional de Córdoba, no Programa Bajo un Mismo Sol. A jornalista Fabiana Bringas me apresentou, falando do meu currículo com meus títulos, livros e publicações e, em momento algum, fez referência ao fato de que sou filho de operário e de uma mulher que fazia trabalho doméstico, que costurava (fazia roupas) para sobreviver. Isso me incomoda. Afinal, essa condição de família operária impactou profundamente a minha vida vivida em bairros operários, com uma família expandida, na medida em que na mesma casa morava meu pai com seus dois filhos, mais a sua irmã com seu marido e seus dois filhos, enfim, uma família expandida. Tudo isso deixou marcas muito fortes na minha vida, foram espaços que eu frequentei e que conformaram meu caráter, minha personalidade.

E nesses bairros operários, a intensa vida cultural que havia, os jogos com os amigos vizinhos de infância, as pipas que fazíamos, não comprávamos, recolhíamos os bambus para fazer a armação, comprávamos, sim, os papéis para fazer as pipas, enfim, tudo isso marcou muito a minha infância, formou meu caráter de trabalhar em conjunto com outros desde criança. Além disso, as dificuldades materiais. E a criatividade que tínhamos, como a da minha tia-mãe para que pudéssemos sobreviver com felicidade mesmo em situação precária. Essa inteligência fui aprendendo muito a valorizar.

Eu me lembro que, quando não havia comida nem dinheiro suficiente, minha tiamãe comprava uma bisnaga [tipo de baguete] e um refrigerante (coca cola ou guaraná) e os dividia entre quatro crianças como se fosse uma festa. Anos depois, quando me ensinaram o que era ideologia eu, para surpresa de “meu formador político”, lhe disse que era uma garrafa de coca cola ou de guaraná. Afinal, passávamos fome felizes, não?

Eu diria que essas experiências vão atravessar minha posição intelectual mais tarde, a princípio, sem que fosse de modo consciente, como hoje as vejo. É como se eu tivesse uma vocação quase natural para valorizar as experiências que vêm de gente que opina sobre o mundo a partir do mundo e que as pessoas devem ser ouvidas independentemente da sua escolaridade, da sua titularidade. São coisas às quais sempre estou muito atento. Aprendi a respeitar meu pai por sua inteligência, por sua sabedoria, na maneira como nos orientava nos valores morais. Ele sempre dizia: “nunca viva das coisas alheias, viva de teu trabalho,” são coisas que me marcaram muito numa família operária em um bairro operário, lugar onde havia festa para tudo! Como na época das festas juninas com os santos, de grandes festas no Brasil todo, sobretudo na região Nordeste. Isso vivíamos muito intensamente, uma alegria muito grande, as crianças, as mães fazendo bolos.

Foram situações que me marcaram profundamente e que, hoje, fazendo uma mirada retrospectiva na minha vida, vejo como isso aparece no meu trabalho sem que eu tivesse consciência de como tudo isso formou o meu caráter. Isso vai ganhar, inclusive, dimensões teóricas: o espaço é co-formador da subjetividade. Habitat, habitus, habitante. O espaço nos conforma, não nos determina. Assim, como é formado, ele nos forma. Isso aparece para mim muito naturalmente. Uma dimensão teórica, mas quando eu olho, vejo que não é só teórica. Coisas que aparentemente são muito simples e que parecem revolucionárias na universidade, quando, na verdade, não têm nada de revolucionário, são [End Page 107] experiências de vida.

E foi em um dos bairros periféricos operários do Rio de Janeiro que se passaram essas situações que me marcaram muito. Não era tanto uma coisa da militância, minha família não era uma família politizada, meu pai era sindicalizado muito mais pelo que o sindicato oferecia de assistência médica, odontológica, era por isso, era por esta razão, não era a luta sindical propriamente dita. Eu não tive isso em minha casa. Passei a ter essa dimensão militante já na universidade, quando entrei em contato com gente que tinha uma militância política ainda na época da ditadura em Brasil. De início fui muito influenciado por dois amigos, professores de História, que eram marxistas e muito respeitados pelos alunos, que conheci quando comecei a dar aulas. Eram dois professores marxistas com muito prestígio e eu os admirava, assim como os alunos. Mas, desde o primeiro momento se passou uma situação, pequena sim, mas que teve repercussões definitivas para mim.

Passo a narrá-la: em determinado dia havia sido marcada uma reunião de professores num dia de sábado pela manhã. Nesse mesmo dia, antes da reunião, eu havia ministrado uma aula com os alunos. Nessa aula, eu fui ao quadro e desenhei um mapa do Brasil, com os ciclos econômicos: o ciclo da cana-de-açúcar, o ciclo de ouro, o ciclo do café que se desenvolveram em diferentes áreas do Brasil, todos esses ciclos voltados para a exportação. Já me inspirava aquela ideia de Manoel Correia de Andrade dos “arquipélagos socioeconômicos” de nossa formação socioespacial. Terminada minha aula, eu esperava a reunião dos professores. Num determinado momento chegou um desses professores que eu admirava, chamava-se Júlio, que perguntou para mim sobre o outro amigo de nome César: “Carlos”, perguntou ele, “César já chegou para a reunião?” E quando eu fui responder, ele se antecipou e falou assim: “Sim, sim, eu estou vendo que o quadro-negro é dele, César”, e desceu para tomar café. Nesse entretempo, chegou César e perguntou para mim o mesmo: “Júlio já chegou?” E quando eu fui responder, ele disse: “Sim, eu já vi que o quadro-negro é dele, ele está aí, o quadro é dele”, e foi para baixo para tomar café.

Aquilo foi definitivo para mim, porque as duas pessoas, que eu tanto admirava e que eram marxistas, politizados, acabaram de reconhecer que meu desenho sobre a formação socioespacial brasileira era excelente, mas para eles não podia ser meu, era para ser de um dos dois. Isso me marcou definitivamente com uma visão crítica aos companheiros de esquerda. Eu os admirava e buscava aprender com eles, mas já desde o início percebi que algumas pessoas fazem do próprio conhecimento autoridade para desqualificar os outros. Isso me marcou definitivamente. Então, já entrei na esquerda, tendo uma visão crítica das pessoas de esquerda e querendo ser de esquerda.

Passemos a um outro momento, chegando mais perto das questões que hoje nos trazem até aqui. Passei um tempo na universidade, como estudante, trabalhando com iniciação científica, com pesquisas de campo na área de Geomorfologia. A Geomorfologia é um subcampo da Geografia Física que estuda as dinâmicas das formas do relevo. Havia no Rio de Janeiro umas lagoas com restingas, que são cordões arenosos que isolam uma porção de água do mar. Essas restingas são formadas com deposições de areia feitas pela dinâmica do fluxo das correntes e ondas marinhas que incidem na costa. Passei três anos trabalhando com pesquisadores das formações lagunares, estudando suas restingas: extraímos as areias, medíamos o tamanho (análise granulométrica), fazíamos gráficos e mais gráficos cartesianos para estabelecermos a estratigrafia na região da Barra da Tijuca, no [End Page 108] município do Rio de Janeiro.

Em 1976, fui trabalhar no Norte do Estado do Rio, no município de Campos dos Goytacazes, com tradição secular de grandes latifúndios canavieiros. Registre-se que o nome do município faz referência aos indígenas Goytacazes. Ali, neste município tinha uma lagoa imensa, chamada Lagoa Feia. Um determinado dia, os alunos me procuraram: “Professor, está havendo um conflito envolvendo os agricultores e pescadores da comunidade de Ponta Grossa dos Fidalgos, localizada nas margens da Lagoa Feia”. Os grandes fazendeiros estavam aprofundando o canal que interconectava a lagoa e o mar e, com isso, a água estava escapando e a lagoa estava diminuindo sua área. Assim, os fazendeiros estavam ampliando seus latifúndios para plantar mais cana.

Registre-se que essa expansão da cana foi uma consequência direta da substituição da gasolina pelo álcool (etanol) com o início da produção dos carros com motor flex. São os primeiros efeitos da nova onda de modernização-destruição do Pró-Álcool. Como consequência, os pescadores que historicamente estavam ali, estavam necessitando caminhar mais de um quilômetro para tomar água e para colocar seus barcos na água para pescar. Nesse momento, ainda vivíamos em plena ditadura empresarial civil-militar e havia um movimento ambientalista local em que os estudantes envolvidos apoiavam os pescadores. No momento em que os alunos me procuravam, os pescadores estavam sendo presos. A polícia lhes exigia uma fundamentação técnica porque não conseguiam acusar os pescadores de comunistas, o que era comum naquela época. Todo mundo que fazia movimento contrário à ditadura era “comunista”, mas ali estavam pescadores simples e os estudantes eram ecologistas. Como eu era geógrafo, os estudantes vieram me propor que fundamentasse tecnicamente as reivindicações dos pescadores-agricultores. Como eu tinha um certo domínio em Geomorfologia sobre a dinâmica de uma lagoa/restinga, eu aceitei e comecei o trabalho para fazer o relatório para justificar o que era correto do ponto de vista da comunidade pesqueira/camponesa.

Várias situações interessantes se passaram. Quando cheguei na área para iniciar os trabalhos, as famílias dos pescadores me trataram muito bem: me serviram frango, carne de porco, carne de vaca, feijão, arroz, salada com alface, tomate e cebola. Pensei: a situação está difícil, os pescadores estão comendo frango, carne de vaca e de porco, mas não estão comendo peixes. Depois de uma conversa inicial, entrei na lagoa com eles e lhes fiz algumas perguntas enquanto conhecia mais de perto aquele ambiente. Desde esse momento ficou uma primeira experiência que se mostraria definitiva em minha vida. Comecei a perceber que conheciam bem a dinâmica da lagoa. Eu conhecia dinâmicas de lagoas a partir de outros parâmetros recolhendo areias, fazendo análises granulométricas e estratigráficas e transformando os resultados em gráficos cartesianos. A partir desse momento, uma primeira convicção se tornou importante para mim até hoje: a ideia de que existem matrizes de racionalidades distintas. Enfim, é possível conhecer o mundo a partir de diferentes matrizes de conhecimento. Desde esse momento, isto é, desde 1976, já se vão 40 anos, eu tinha 26 anos, formei a convicção de que existem múltiplas formas de produção/criação de conhecimento. Isso vai marcar minhas convicções teórico-políticas, com a defesa desses conhecimentos, da importância do conhecimento local. Desde ali, fiz o relatório que eles me solicitaram e fiz a defesa da legitimidade da reivindicação dos pescadores e [End Page 109] agricultores diante das autoridades.1 Depois que viram que eu era uma pessoa confiável, me convidaram a comer e me serviram peixe e lagosta e, pela primeira vez em minha vida, comi lagosta. Serviram peixes maravilhosos e a partir daí fui tratado como se fosse de casa, como um dos seus. Sim, a partir daquele momento podia comer os peixes.

Afinal, eu havia sido testado e, assim, aprendi essa lógica camponesa de falar por vários mecanismos, não necessariamente com palavras. Minha experiência com os seringueiros da Amazônia nos anos oitenta não se explica sem essa experiência com os pescadores da comunidade de Ponta Grosso dos Fidalgos, no município de Campos dos Goytacazes no norte do Estado do Rio de Janeiro. Eu havia aprendido meu respeito ao conhecimento dos povos da floresta com o diálogo com o conhecimento dos pescadores e camponeses. Isso vai marcar minha produção teórico-política que, como se vê, não vem somente da minha formação acadêmica, a não ser de modo indireto e, surpresa, só foi possível inicialmente por meu conhecimento de Geomorfologia e por minha abertura para ouvir aquela gente o que, de certa forma, tem a ver com minha origem de família operária, de gente simples que, todavia, tem grande sabedoria. Daí não é sem sentido que eu me interesso tanto por situações como essa de luta contra o despejo porque foram experiências dramáticas que tive em minha vida familiar. Falo disso com sentipensamento, como diria Orlando Fals Borda.

Minha cumplicidade com aquela gente que defendia suas condições de produção/reprodução da vida com seus sentidos próprios me levou ao mesmo tempo a me envolver com a causa ambientalista que, por seu lado, me levaria a sérios problemas com a esquerda marxista tradicional. Afinal, eu venho do marxismo, no entanto, tomava a causa ambiental como sendo do interesse dos camponeses, dos trabalhadores. Enfim, para mim, essa questão não era uma questão somente das classes médias urbanas, como a esquerda tradicional procurava desqualificar aqueles que se mobilizam em torno dela. Isso também me obrigou a fazer uma trajetória própria dentro do marxismo. E como o marxismo é mais plural do que os marxistas ortodoxos pensam, me aproximei de autores como André Gorz (ou Michel Bosquet, seu nome como intelectual ativista), com Alfred Schmidt, com Jean-Pierre Deleage, com Herbert Marcuse e Enrique Leff, entre outros. Desde então, mantenho compromisso com essa questão e com os grupos/classes sociais que lutam para garantir o controle e o acesso às condições materiais de reprodução da vida, inclusive a natureza.

A defesa da vida implica uma episteme, formas distintas de sentir a terra, e daí emana, de certa forma, minha militância propriamente dita que atravessa e é atravessada ao mesmo tempo por uma lógica investigativa. Por essa época, eu ainda não conhecia Orlando Fals Borda, pois somente nos últimos 10 ou 12 anos tive contato com sua obra e, desde aí, me dei conta que o que eu fazia era o que ele já havia sistematizado em sua teoria da investigação-ação-participativa - IAP.

LS:

Que coisas te movem para continuar se reinventando, para atualizar-te, para repensarte, para não te deixar marcado com as conjunturas negativas que te atravessam? [End Page 110]

CWPG:

Não sei! Posso dar uma resposta intelectualizada à pergunta. Mas, talvez, uma observação que fiz antes nos ajude. Talvez Freud explique mais do que Marx, sobretudo com esse tema da desterritoralização. Como disse, passei em minha infância por algumas experiências de despejo, dolorosas, muito dolorosas. Essas situações de ver sua família sendo despejada, seus pertences na rua, e não foi uma vez só, é uma questão que me mobiliza visceralmente.

Dessa forma, o tema do despojo de território me marcou o corpo. Eu não consigo ficar quieto diante desses processos de despojo que acontecem de maneira generalizada. Isso me dói profundamente. Essas violências eu sofro e as elaboro intelectualmente. Essas cenas me comovem.

Um exemplo disso vivenciei com um camponês de nome Cristóforo, de Cobija, no Departamento de Pando, Bolívia, onde eu trabalhava no início dos anos 1990, assessorando a luta para demarcar terras com os seringueiros. Desenvolvia um trabalho de cartografia social com os camponeses, quando recebíamos a notícia de que uma família, a família do Senhor Cristóforo, acabara de migrar da floresta para a pequena cidade-capital do departamento, Cobija. A cidade, muito pequena, terminava/começava junto ao bosque. Tive uma ideia: convidei o Sr. Cristóforo para que caminhássemos pela floresta próxima. E lhe perguntei: “Sr. Cristóforo, por que o senhor está deixando seu ‘puesto gomero’2, amigo? Por que estás se deslocando para Cobija?” “Está difícil viver”, disse, com o corpo muito curvado. E caminhando com Sr. Cristóforo, íamos conversando, entrando no varadouro3 em meio à floresta. Fomos entrando e conversando, e quando estávamos a uns 50, 100 metros adentro, eu disse ao Sr. Cristóforo, “Senhor Cristóforo, caminhe à frente porque eu sou da cidade e aqui, na floresta, eu não sei os caminhos, conheço muito pouco ou quase nada”. E, em seguida, lhe disse, “na floresta, Sr. Cristóforo, o doutor é o senhor e não eu”. E falei com muita sinceridade: “aqui quem conhece é o senhor. Eu não conheço nada na floresta”. Nesse momento seu corpo mudou, ficou ereto, e sua voz se fez mais firme, dando uma verdadeira aula sobre cada coisa e suas utilidades múltiplas. Uma beleza!

Quando regressamos e nos despedimos, cheguei em casa com uma convicção: a humanidade fica mais pobre quando pessoas como seu Cristóforo deixam a floresta e vão viver na cidade. Sim, a humanidade fica mais pobre, pois o conjunto de conhecimentos que tem não serve para nada na cidade. Sim, essas pessoas reinventam a vida também nas cidades, vão ser criativas da maneira que podem, mas a humanidade perde um conhecimento profundo que havia sobre aquele bosque.

Em um outro momento, nos anos 1990, vivi uma situação semelhante com um porteiro de um hotel na cidade de Natal, no Estado do Rio Grande do Norte. O hotel ficava na praia e durante os dias em que ali fiquei hospedado enquanto ministrava um curso, fiz amizade com esse porteiro de nome José. Certo dia, ele me disse que era filho de pescador e me apontou para o local na praia onde havia sido criado. Num determinado momento, olhando bem no olho do José, lhe fiz uma afirmação dura e cúmplice: “José, veja que regressão cultural ocorre em você em relação ao seu pai! Quanto conhecimento [End Page 111] seu pai tinha necessidade de desenvolver para poder pescar, sobre a temperatura, a salinidade do mar, a cor da água; sobre os ventos, sua força e direção; sobre os pássaros que acompanhavam os cardumes; para fazer as redes de pesca, e tantas coisas mais! E o que você, José, necessita para ser porteiro?” Se fez um silêncio cúmplice e nos abraçamos com um sentido profundo de cumplicidade/amizade.

Assim, além da questão do despojo que me faz sofrer/pensar/agir, tem essa outra que é de entender que a humanidade perde muito com os despojos e não somente as pessoas desterritorializadas. É necessário criar formas de interagir, dialogar e reconhecer a dignidade dessas pessoas, de suas culturas. No fundo, essa é a palavra-chave: dignidade!

Isso tudo implica afetos e me emociona, me dá energia para usar as condições de que disponho, de ter um salário fixo que me permite sobreviver melhor e, ao mesmo tempo, não perder esses vínculos com esses grupos sociais. A jornalista Fabiana Bringas foi muito sensível no fim da entrevista ao acrescentar ao meu curriculum dizendo que, além do geógrafo e professor, ali estava o filho de um operário e de uma costureira. Então, existem essas dimensões profundas, e quando você me provoca, fazendo perguntas que remetem à formação do meu caráter, aparecem esses espaços mais recuados no tempo que me fizeram ser como sou. Intelectualmente, eu diria que a bibliografia foi entrando na minha vida menos pela academia e mais pela vida. Na verdade, foi diante dessas questões, dos conflitos implicados na desterritorização que fui buscar a literatura que me ajudasse a entender a vida. Nunca a teoria teórica, como ironizava Pierre Bourdieu, mas sempre a teoria que dialogue com a vida, neste caso, sim, gosto da teoria.

Em minha tese de doutorado não tem capítulo teórico! Há interregnos teóricos em meio das minhas análises. Na tradição da Geografia sempre se começa uma investigação com localização geográfica. E na minha investigação de tese eu comecei me localizando não só com relação às coordenadas geográficas, mas me localizando no debate teórico em diálogo com a empiria, e só mais adiante é que faço a cartografia do lugar que eu ia estudar, na Amazônia Sul-Ocidental, no Acre, junto com os seringueiros. A questão teórica aparece no meu trabalho como se fosse uma bengala, um bastão em que me apoio para que a vida em processo fale. Ao descrever processos, necessito trazer algum conceito, então faço um box ou um interlúdio de uma página e logo regresso à empiria, e vou fazendo assim, a teoria vai servindo à empiria e, por isso digo não à teoria teórica. Enfim, gosto da teoria, gosto de ler livros de teoria para, quando necessário, poder lançar mão delas. Mas na investigação, é como se deixasse a teoria em suspenso até que seja convocada pelos processos em análise. Enfim, teoria com a vida e não sobre a vida. Teoria com sentido, no duplo sentido, de teoria que sente e teoria implicada com os sentidos emancipatórios contra a opressão, contra a exploração dos homens, mulheres/etnias/povos e classes sociais em situação de subalternização. Um dia, quando participava de uma banca de tese de doutorado com um professor de formação em Geologia, uma área de conhecimento que não tem grande tradição nos debates epistemológicos, esse professor-geólogo fez uso de uma metáfora que, a princípio, poderia ser considerada pobre que, no entanto, se revela muito rica. Ele disse que o assunto que debatíamos na tese a ser analisada estava coberto por muitas “camadas de interpretação” que nos impediam de ver o problema.

Então, é isso: qual é o problema a ser investigado?. Muitas vezes, a teoria nos impede de ver os problemas, quando deveria nos ajudar a enfrentá-los. [End Page 112]

Há uma poesia de Arnaldo Antunes, gravada com música de Gilberto Gil, que nos fala que as coisas têm tantos atributos que lhes colocamos de modo que “as coisas não têm paz”. A pretensão de verdade que reivindicamos ao pôr nomes nas coisas nos leva à ilusão de que o mundo está nas palavras, nos conceitos. As coisas não têm nomes naturais. A palavra pedra não é sólida como as pedras. As coisas são, sempre, mais do que os nomes que nelas colocamos. A palavra água não mata a nossa sede. Nenhuma teoria pode conter a realidade a que se refere. Cuidemo-nos com isso. A verdade não está nos livros, nas bíblias, origem da palavra bibliografia. Não só não está nos Livros Sagrados do Evangelho ou no Corão, mas também não está nos livros com pretensão científica. Essa crença nos textos fora de contexto está na origem dos dogmatismos em suas diferentes manifestações e naqueles que reivindicam a ortodoxia, literalmente, a opinião (doxa) correta (orto). Nós temos dificuldades de admitir isso com naturalidade e tentar atravessar o conjunto das “camadas de interpretações”. Os gregos se referiam à Lua como mens, que nos deu mensurar, mensal, menstruar, ou seja, um ciclo de medida do tempo. Já os romanos se referiam à Lua como Luna que remete à sua luminosidade. A mesma coisa, Lua, foi referenciada com significações distintas. A Lua não é a mesma coisa para os romanos e para os gregos. Não é que um esteja certo e o outro errado. Eles estão se referindo a coisas diferentes diante da mesma coisa que, assim, não é a mesma coisa para cada qual. Quando um tenta impor a sua visão do que seja a verdade...

Somos animais simbólicos e como tais nos relacionamos por meio das palavras, para o bem e para o mal. Ninguém pode aprisionar a vida nas palavras. Sou um discípulo, contraditório sim, de Sócrates que não escreveu nada.

Como se escapa disso em nossas investigações, sem que deixemos de fazer teoria? As generalizações são necessárias para nos comunicarmos e os conceitos fazem isso. Buscamos nas teorias e seus conceitos alguma forma de diálogo mais amplo, e se não temos conceito não há forma de conseguirmos sequer falar, nos comunicar. O conceito de cachorro é necessário, afinal de contas, cachorros não são gatos. Gato é outro conceito, que se distingue dos cachorros ou de pássaros. Só que os conceitos sempre são tão generalizantes que podemos morrer deles. Cachorros, de que cachorro estamos falando? De um pitbull ou de um bulldog? Um é violento e o outro afável, no entanto, os dois são cachorros. Os conceitos nos ajudam, entretanto, se não prestamos atenção nos detalhes, podemos morrer pelos conceitos.

Gatos e/ou cachorros são conceitos, formas de distinguir as coisas necessárias para viver. Toda sociedade faz distinções e estabelece relações entre o que distinguiu. Por exemplo, a sociedade ocidental, que se constitui com a moderna colonialidade capitalista pós-1492, estabelece distinções entre brancos e negros e, mais, faz das distinções hierarquias: os brancos são melhores que os negros. E aí já temos o racismo. Até a sociedade moderna ocidental e sua colonialidade, a relação entre as pessoas de cores diferentes, não implicava necessariamente hierarquia. Os africanos e as africanas, por exemplo, não se auto identificavam como negros ou negras até porque não tinha nenhum sentido em fazê-lo: eram todos e todas negros e negras. A distinção das pessoas por sua cor de pele é parte das relações sociais e do poder colonial que ainda nos habita. Os conceitos são, como se vê, relacionais. [End Page 113]

LS:

Que aprendestes nesses tempos?

CWPG:

Aprendido!? Continua-se sempre aprendendo. Não me agrada o argumento de autoridade para legitimar o que se fala. Me parece uma espécie de cala-boca. Olha a autoridade de quem vai falar, sempre nos recomendam a aceitá-la. Isso nega tudo que eu penso. O pensamento é, sempre, provisório. Insisto, como discípulo contraditório de Sócrates, que não escreveu nada. O conhecimento deve estar sempre inscrito na vida. E na hora que você escreve, parece que o texto escapa do contexto. Acautelamo-nos do texto que se quer fora do contexto para, de fora, dizer a verdade do mundo, sobre o mundo. Seja o texto pregado por um Rabino, por um Padre, por um Pastor, por um Filósofo ou por um Cientista que traz uma verdade produzida fora do contexto. Sublinhemos que as verdades sempre são contextualizadas, sempre situadas.

Tenho um sentido muito crítico de meu trabalho. Estou convencido de seu caráter provisório, contextualizado no tempo e no espaço, ou melhor, no espaço-tempo. São textos datados, têm datas certas, não se pode fugir disso. Não tenho nenhum problema de reescrever ou de escrever hoje o contrário de que escrevi ontem. Nos dois casos estarei convencido de que o escrevi porque estava buscando analisar processos que nos ajudassem a superar as condições de exploração, de opressão, de submissão de mim mesmo e dos outros. É isso que me move, é isso que comove.

LS:

Que é para você a dignidade?

CWPG:

A dignidade? Eu vou te dar uma resposta que não é tão pessoal, muito embora também a seja, como sempre. Não busquemos nos esconder por detrás do Eu Majestático. Para mim, a dignidade emana dos movimentos sociais que vêm oferecendo um novo léxico teórico-político que está em curso na América Latina, onde a dignidade tem muita força, como no discurso zapatista, no discurso indígena-camponês e que vem das periferias urbanas. Neste sentido, compartilho a análise que faz Arturo Escobar quando diz que o pensamento crítico latino-americano não está em crise. Ao contrário, encontrase num momento de grande vigor intelectual e, como afirmam Catherine Walsh e Luís Macas, há uma luta que é, ao mesmo tempo, epistêmica e política.

Nesse novo léxico teórico-político a dignidade é um valor muito forte. A luta pela vida, pela dignidade e pelo território é a consignação que foi trazida ao debate por duas Grandes Marchas, ambas de 1990, na Bolívia e no Equador. A dignidade significa respeitar o outro como outro. É dizer, me respeite como digno, respeite a maneira como sou como um modo digno de sentir/pensar/agir e, nesse sentido digo, a dignidade é a condição para a verdadeira igualdade, para a verdadeira fraternidade, para a verdadeira liberdade. Mas o valor fundamental é a dignidade. Se me respeitas como outro, eu sou como o outro, digno e, assim, a igualdade está dada, a liberdade está dada, a fraternidade está dada. Veja, todavia, que não é liberdade, igualdade e fraternidade que está na consignação desses movimentos, mas, sim, a vida, a dignidade e o território. É outro léxico teórico-político com a Terra, Desde abajo por la izquierda y com la Tierra, como nos diz Arturo Escobar.

Nesse sentido, essa palavra é muito forte, muito densa, e ela vem ao debate trazida pelo movimento indígena e camponês na América Latina. Isso me chama a atenção: [End Page 114] o significado e a força desse valor. No fundo respeitar a diferença e não ver o outro como inferior, como indigno, então a dignidade passa pelo respeito pelas pessoas/pelas culturas, pelos povos serem como são. E, obviamente, para que isso exista verdadeiramente - a diversidade e a diferença - com densidade/profundidade não pode haver submissão nem subalternização ou opressão, por isso é preciso lutar contra a colonialidade, tanto quanto contra o capitalismo. Não podemos deixar a liberdade nas mãos dos liberais que confundem a liberdade com a liberdade individual e esquecem que há diferentes maneiras de produzir individualidades. Só existimos em meio a uma cultura, em meio a um “magma de significações imaginárias”, como diria Cornelius Castoriadis. Todavia, a cultura não é algo abstrato e que se dá somente no plano do simbólico. Há que ter as condições materiais para criar os alimentos, a agricultura; para curar-se, as diversas medicinas; para habitar, as diversas arquiteturas. Por isso a consignação é pela vida, pela dignidade e pelo território, sendo o território onde a sociedade/grupo social controla suas condições materiais e lhes dá significação.

LS:

Que lugar queres ocupar nas transformações que buscas?

CWPG:

Tenho isso muito claro e costumo dizer nas conversas mais informais com meus alunos: que queremos fazer, na verdade, com as causas pelas quais lutamos? O que, às vezes, colocamos como uma utopia muito distante é que, no fundo, queremos construir uma sociedade, em que as pessoas possam ser amigas. A amizade, essa categoria fundamental, ética, política, filosófica. Vivemos numa sociedade que impede que as pessoas sejam amigas. O que estimula a concorrência e está fundada na opressão, exploração, na indignidade do outro impede que se possa construir amizades. O que queremos no fundo é uma sociedade, na qual as pessoas possam ser amigas. Quero ter uma sociedade onde possamos ser amigos, mesmo com as nossas diferenças. O lugar que quero ocupar é um lugar comum, nenhuma pretensão de ocupar um lugar especial. Me esquecem, mas não me esquecem.

É contraditório, porque, uma coisa que me inquietou muito em um determinado momento, final dos anos 70, 80, quando, muito cedo, comecei a inquietar-me com as ideologias socialista, coletivista, comunista, que tanto falavam do coletivo, do social, do comunal, mas que haviam construído muito culto à personalidade: marx+ismo, mao+ismo, estalin+ismo, trotsk+ismo, lenin+ismo. Isso me incomodava, e aí me pus a fazer questões que, ao mesmo tempo, me davam um gosto pessoal de ter meu trabalho reconhecido -então não me esquecem. Mas ao mesmo tempo, qual o limite dessa satisfação pessoal para não estabelecer outro culto à personalidade? O limite é que minha satisfação pessoal não pode ser maior do que as razões éticas, morais, comunais, pelas quais estou lutando. A linha é tênue, mas saber que há essa linha é fundamental para vivamos atentos. No dia em que minha satisfação pessoal for mais importante que as causas que estou implicando, vai conduzir tudo ao individualismo. Quero ser reconhecido, sim, mas quero ser reconhecido com essa ideia de dignidade, reconhecer o outro, que é a única maneira de poder identificar a mim mesmo, na medida em que o outro seja o outro de quem me diferencio/com quem me identifico.

Vocês, em espanhol, têm essa palavra linda que é nosotros. Em português se diz [End Page 115] nós enquanto em espanhol o nós inclui o “outro”: nosotros. Enfim, é pelo outro que me constituo como Eu/outro. Ouvir/sentir o outro está na minha construção. Nosotros tendo o outro, com o qual me constituo é uma força da língua espanhola que não temos em português. Em português, o outro ficou fora de nós, como se pudesse haver um nós que não seja o outro, um nosotros. Isso me parece uma ideia forte que indica o lugar que eu quero ter: nenhum lugar especial. Com muita frequência, os estudantes que trabalham comigo na universidade me veem dizendo que não sei organizar, não sei dirigir nada, e falam de muitos dos meus defeitos. Se quiser trabalhar aí vamos trabalhar juntos. Eu tenho uma série de qualidades, inclusive as que não tenho. Não quero ocupar nenhum lugar especial, só não quero que se esqueçam de cada um. Essa é a força da dignidade.

LS:

O que vês e o que sentes, como vives a sensibilidade como lugar para conhecer?

CWPG:

A sensibilidade é uma palavra que não cabe bem numa entrevista, porque vai ter que racionalizar, o que já é uma forma de negar a sensibilidade, uma racionalização. A sensibilidade, para ser bem sincero, em seu sentido material, está no tato, no contato com as coisas que são duras, macias, maleáveis, líquidas. Sensualismo, de sentir a coisa, a sensibilidade nesse sentido material e com as pessoas.

Enfim, é preciso vivenciar essas situações, falar sobre isso é sempre uma racionalização que se empobrece quando fala de tuas emoções. Geralmente, quando vivemos momentos emocionais densos, dizemos, “não tenho palavras para dizer o que estou sentindo.” Se o momento é denso de emoção, essa é a única declaração legítima, “não tenho palavras.” Então, falar para você sobre sensibilidade já implica uma racionalização. Muitas coisas me emocionam: é ver uma festa camponesa, uma festa na periferia, como vivenciei muitas na minha infância e na minha juventude. Emocionar para mim é dançar, isso me emociona porque meu corpo entra nisso e danço junto, momentos mais densos, relações de amor e atos de toque sensual, isso é forte, é denso.

LS:

O que te sugere a expressão resistências criativas?

CWPG:

Uma ideia que me parece redundante. Michel de Certeau diz que a astucia é a arma dos fracos. Muitas vezes, é preciso se fingir de morto para permanecer vivo. A resistência sempre é criativa, não pode haver resistência sem criatividade. Há um livro belíssimo de James Scott, Los Dominados y el Arte de la Resistência que fala disso. O livro tem muito a ver com tua pergunta.

James Scott, antropólogo norte americano e discípulo do historiador inglês E.P. Thompson, fala do discurso oculto e do discurso público nesse livro. Na verdade, fala do espaço público e do espaço oculto. No livro, toma um romance em que uma negra em um momento de loucura assassina seu patrão, seu senhor, nos Estados Unidos. Nos dias que seguem essa pessoa negra é morta, e no lugar onde ela foi assassinada, há sangue. Passamse os dias e as pessoas começam a fazer peregrinações ao lugar onde ela foi morta que se torna um lugar sagrado. Uma pessoa que cometeu um crime, e os dominados, em seu espaço oculto, sabem que o crime individual foi compreendido como justiça para todos/todas. O espaço público não é o espaço onde os dominados, os “de baixo” se expressam [End Page 116] nos dias normais. No entanto, quando uma negra mata seu patrão, esse ato é um ato social, todos/todas começam a fazer peregrinação para legitimar, põem flores onde ela foi morta, como se consagrassem esse ato.

Scott vai trabalhar isso o tempo inteiro, os espaços ocultos e públicos. Os espaços públicos, os espaços da vida normal (da norma) são os espaços em que os “de baixo” só operam em atos públicos que desnormalizam o trânsito, ou seja, o fluxo normal da vida. No entanto, os escravos falavam na senzala, nós não sabemos o que falavam. Que falavam, falavam não tenhamos dúvida. Provavelmente muitos atos de reverenciar um negro que matou seu patrão foram feitos. Levar flores, como quem diz, “olha... fizeram isso por nós.” Talvez isso ajude a responder um pouco à tua indagação sobre as resistências criativas.

LS:

E que poesias, que palavras te dizes a ti mesmo nesses momentos quando a luta está em momentos duros, para ter ânimo, para não abandonar a luta? Que te traz? Tens alguma poesia? Alguma palavra?

CWPG:

Várias vezes quando me fazem essa indagação me lembro do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956) que dizia: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Então, nunca reclame da violência dos “de baixo” que é violência derivada da violência das relações que sofrem. Isso nos serve para entender as práticas de rebeldia. A rebeldia de quem está sofrendo a violência é, sempre, legítima. É um referencial quase natural, corporal. Digna rabia, não?

O primeiro jurista negro no Brasil, Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882), deixou uma frase radical, que é um incômodo: “Todo crime cometido por um negro será sempre em legítima defesa.” Não há como penalizar individualmente, haja vista que parte de um crime histórico—a escravidão e o racismo—e, por isso, tanto nos afeta, ainda hoje, a frase desse jurista. Parece que está legitimando a violência, qualquer uma, mas o que está nos trazendo ao debate é que essa violência não é individual, é histórica, e há que se enfrentar essa digna rabia superando o racismo, a opressão, sem meias medidas, como condição de humanizar brancos e negros. Há uma ética histórica nessa rebeldia que nos movimenta, que nos alimenta. Há que superar o racismo, o sexismo, a homofobia, o patriarcado, o capitalismo, pois são dimensões das relações sociais e de poder que rebaixam o ser humano independentemente de que lado esteja nas relações de opressão/exploração. Embora não seja o mesmo estar entre os “de baixo” ou entre os “de cima.” Estar com os “de baixo” nos dá um sentido, no duplo sentido da palavra, mais próximo, um sentipensar com sentido para superar a opressão/exploração. [End Page 117]

Laura Sarmiento
Córdoba, Abril 2016

Footnotes

1. Os termos pescadores, camponeses, agricultores e seringueiros mencionados na entrevista se referem tanto aos homens como às mulheres que trabalham nessas formas de subsistência. [Nota do revisor]

2. “Puesto gomero” é o nome que se dá na Bolívia ao que os seringueiros brasileiros chamam “colocação”. Corresponde ao local de sua habitação e, ao redor, há um pequeno roçado e criação de pequenos animais. Da colocação saem/chegam as “estradas de seringa” que percorrem para sangrar e recolher o leite (borracha).

3. Varadouros são os caminhos no meio da floresta que ligam várias “colocações”, vários “puestos gomeros”.

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