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  • Entre dois palcos: futebol e teatro na literatura de Nelson Rodrigues
  • Bruno Carvalho

A fortuna crítica de Nelson Rodrigues (1912–1980) faz jus à riqueza de sua obra, reunindo as mais diversas leituras e abordagens.1 A crítica do autor, entretanto, tende a tratar dois espaços fundamentais do seu universo dramático – o palco teatral e o palco futebolístico – de forma independente, quase como se entre eles houvesse uma espécie de abismo, de distância irreconciliável, ou simplesmente, como se um não tivesse muito a ver com o outro. O primeiro pressuposto deste ensaio, já amplamente reconhecido, é de que as crônicas futebolísticas de Nelson Rodrigues também tem qualidades literárias, “são literatura,” e como tais devem ou podem ser lidas.2 Partindo desta consideração, podemos perceber na criação rodrigueana uma relação intercomplementar entre o futebol e o teatro. Ainda que tal relação seja marcada por assimetrias, há uma tensão dialética entre os dois palcos, de onde emergem faces distintas de temas problematizados tanto em um quanto no outro: identidade, nação, classe e raça, assim como a função da catarse, a natureza da ficção e da escrita.

Este ensaio, portanto, se propõe a refletir sobre alguns elementos teatrais na representação do esporte em crônicas do autor, e busca repensar o lugar do futebol na sua produção literária. O autor, ao escrever que a “mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana” (A sombra 103), sugere ou ao menos autoriza a aproximação entre imaginários literários e “boleiros.” O Nelson Rodrigues das crônicas, para quem um gol de bicicleta de Leônidas [End Page 409] “só pode ser descrito no largo e cálido tom homérico,” fazia referências a personagens de Fyodor Dostoyevsky e Charles Dickens, e comparava uma escalação do time do Fluminense a um soneto do Olavo Bilac. Na revista Manchete Esportiva, que ele e Mário Filho (1908–1966) criaram em 1955 e que duraria somente até 1958, encontramos edições onde o tricolor Didi era apresentado como “Rigoletto” (Castro 303).

Mário Filho, irmão do autor, havia escrito o pioneiro O negro no futebol brasileiro (1947).3 Nelson Rodrigues, cujo interesse por questões raciais é evidente em peças como Anjo Negro (1946), lida com preconceitos no campo futebolístico de forma mais enviesada. O “Rigoletto” Didi (Valdir Pereira, 1928–2001), mulato, era apontado por seus detratores como um jogador indolente e preguiçoso.4 Nas crônicas do dramaturgo, o campeão do mundo pela seleção brasileira em 1958 ganharia uma espécie de epíteto: “príncipe etíope de rancho.” A frase, apesar de lúdica, contém uma precisão evidente para quem tem familiariedade com o estilo do jogador. Como quem desfila de príncipe em um rancho carnavalesco, Didi parecia não se esforçar em campo, e se movimentava de forma econômica e elegante. O cronista ressalta a associação à descendência africana, atribuindo ao jogador a “dignidade racial de Paul Robeson” (A pátria 61), cantor e ator negro então envolvido no movimento por direitos civis nos Estados Unidos. A descrição de Nelson Rodrigues inverte as expectativas, transformando o estilo de Didi em sinal não de indolência e preguiça – termos com possíveis insinuações raciais – mas de altivez e nobreza.5

Ainda na Manchete Esportiva, o vascaíno Bellini aparecia como o Radamés de Aída. Trata-se de outro exemplo significativo por mesclar o futebol e a ópera, uma referência recorrente no imaginário rodrigueano, também relativamente pouco estudada pela crítica teatral. Além de trazer alusões literárias ou da alta cultura para o jornalismo esportivo, ao mesmo tempo, Nelson Rodrigues costumava reclamar que os escritores brasileiros não sabem “bater um escanteio.” Se o mesmo recado valeria pra crítica, não podemos deixar de assinalar a publicação de Veneno remédio: o futebol e o Brasil (2008). Apesar de não lidar diretamente com o teatro de Nelson Rodrigues, o...

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