University of Wisconsin Press
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Barbieri, Therezinha . Ficção impura-Prosa brasileira dos anos 70, 80 e 90. Rio de Janeiro: UERJ, 2003. 121 pp.

Acidamente criticada como banal e empobrecida ou elogiada com veemência como independente e criativa em relação aos padrões estéticos consagrados, a ficção brasileira contemporânea vem se colocando como um fértil campo de estudos críticos para quem nele se aventure. Entrando nesse campo, Therezinha Barbieri, no livro Ficção impura—Prosa brasileira dos anos 70, 80 e 90, tenta dar conta de algumas linhas de força que nele interagem. [End Page 210]

Para tanto, ela seleciona alguns textos específicos de autores como Sérgio Sant'Anna, João Gilberto Noll e Rubem Fonseca, consagrados por parte expressiva da crítica acadêmica, juntando-os, por exemplo, a Diogo Mainardi e até ao Fernando Gabeira de O que é isso, companheiro? Essa seleção, segundo a autora, justifica-se na proposta do livro: enfocar os textos como "partes de um conjunto que se desenha a partir deles" (15), vendo-os em "permanente intercâmbio" com signos pertencentes a outros "sistemas semióticos," dentro de uma noção de período histórico dada por Panofsky, que implica considerar "continuidades e rupturas" (14). No recorte temporal estabelecido, Barbieri vê, então, elementos unificadores: a presença do mercado e a interação com a mídia.

Na primeira incursão analítica do livro, intitulada "Letras no mercado," ela reconhece que livro e leitor hoje, "são mercadologicamente dimensionados" (30); no capítulo seguinte, "Cenas do simulacro" ela percebe "linhas de dispersão e contraste, contradições e discrepâncias múltiplas" (56) que a impedem de "identificar critérios de validade" adequados; em "Contracenando com a história," na seqüência, utiliza um viés temático, arrolando textos díspares, todos chamados de narrativas históricas e, por fim, conclui seu trabalho, reiterando que "mesclas de gêneros literários e de múltiplos registros estilísticos" (11) caracterizam a ficção contemporânea.

À primeira leitura, o livro parece instigante e original, mas aos poucos revela alguns problemas teórico-metodológicos e estruturais que comprometem o conjunto e os resultados. O primeiro diz respeito à falsa historicidade implícita no próprio título: as décadas abordadas desfilam quase indiferenciadas, sem relações de causalidade e sem que se tentem aprofundar minimamente os aspectos sócio-histórico-culturais que as enformaram e que se traduzem nos textos literários. Nesse sentido, muito mais do que a censura, a política cultural do período militar, matriz terrivelmente fecunda, de onde se originou o quadro contemporâneo da produção de cultura—sua consolidação como valor de mercado—é apenas tangenciada. Ou seja, embora a autora afirme: "não devo separar [a ficção] do solo de que ela se nutre " (80), é isso que ocorre. O segundo está relacionado a um ecletismo teórico bastante aparente: desde pinceladas de sociologia da literatura, quando trata do mercado, passando por tentativas de interpretação semiótica, no intercâmbio com o cinema, até o impressionismo um tanto senso-comum que reveste a análise das "narrativas históricas." O terceiro deve-se à indefinição do tipo de discurso: o "jogo ensaístico claro e ágil" citado na contracapa derrapa em citações teóricas de inequívoca filiação acadêmica, embora não haja nenhuma menção ao tipo de trabalho que originou o livro; trata-se de dissertação de mestrado, tese de doutorado, relatório de pesquisa?

Daí o aspecto de bricolage de que se reveste o conjunto, como resultado de uma colagem de textos isolados, partes autônomas sem um objetivo unificador, cujo fio condutor é apenas o objeto: um recorte das narrativas do período escolhido para análise. De certa forma, a estrutura do livro espelha a própria estrutura interna de cada parte, construída com análises pontuais de textos díspares e aleatoriamente selecionados, pois também não estão claros os critérios utilizados para tal seleção. Pode-se afirmar que o livro de Barbieri fica a meio caminho do [End Page 211] que se propõe: por pertencer a uma linhagem teórica mais preocupada com a imanência do texto, o que sua bibliografia revela, mas não podendo se furtar a um exame do contexto, dada a importância que as especificidades deste vêm assumindo como elementos constitutivos da produção e do consumo de literatura no Brasil das últimas quatro décadas, ele não consegue equacionar as grandes questões que esse mesmo contexto hoje propõe ao pesquisador e ao crítico. Talvez isso ficasse menos difícil se ela considerasse com mais rigor, sem apenas utilizá-la sem citação, uma bibliografia séria que há tempos vem tratando dos mesmos temas, embora com outro enfoque teórico.

O livro de Barbieri parece ilustrar, não no campo da ficção, mas no daquela realidade dedicada à pesquisa e à crítica, a tendência à pressa que o giro vertiginoso do mercado impõe, perdoando qualquer inadequação, no intuito de não deixar estancar a produção. De qualquer modo, ele tem o inequívoco mérito de acentuar a necessidade de mais estudos críticos sobre o assunto, que a cada dia se revela mais instigante e sedutor.

Tânia Pellegrini
Universidade Federal de São Carlos-SP
Tânia Pellegrini

Tânia Pellegrini is Associate Professor of Brazilian Literature and Literary Theory in the Departamento de Letras, at the Universidade Federal de São Carlos, SP, Brazil, where she coordinates the Laboratory of Studies on Contemporary Brazilian Fiction (LEFIC). She has published Gavetas vazias-ficção e política nos anos setenta (1996) and A imagem e a letra-aspectos da ficção brasileira contemporânea (1999), as well as articles in several Brazilian and international academic journals. She was a Visiting Professor in the Department of Spanish and Portuguese at the University of California, Santa Barbara, in 2002.

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