University of Wisconsin Press
  • A solidão tropical e os pares à deriva:Reflexões em torno de Alencar
Abstract

This article is a (re)reading of the construction of subjectivity in the passage from the Enlightenment to Romanticism, drawn from a comparison of the perspectives established by Defoe and Rousseau in Europe and by Alencar in Brazil. Further, it considers Romanticism's inestimable contribution to the conception of modern thought. It attempts as well to re-evaluate the reception of "romanticism" in Brazil in light of a renewed investigation of Alencar's narrative.

Não raro, interpretar é inserir aquilo que se deseja ou que é conforme a um fim, e muitas especulações são propriamente desvios

—Athenäum, Fragmento 25

Recuperar a memória da vida selvagem, de que seu tempo só tinha visibilidade a partir de ruínas, e fazê-la interagir com o mal-estar e a ambivalência da colonização nas Américas foi um dos desafios que José de Alencar tomou a cargo. A semente filosófica da reflexão de vanguarda do Romantismo ficou aguardando na fila do conjunto de projetos para o Brasil no século XIX.

Desencadeada pelos alemães de Iena, ela consistia em salientar a realidade e o fascínio da liberdade criadora da imaginação. E em formular "a instituição teórica do gênero literário (ou, se quiser, da literatura mesma, a literatura como absoluto)."1 Enquanto isso, na cena tropical, intelectuais de peso, mas concentrados numa visão simbólica do nacional, velavam as dissensões político-econômicas, do mesmo modo que a distinção entre o real e a ficção. Apresentando um rosto homogêneo para o país que nascia híbrido, promoviam uma leitura quase pragmática do ficcional. Na complexidade de sua envergadura, as relações desiguais entre o excluído e o dominante eram diluídas [End Page 1] em histórias de amor entre contrários, num pensamento de conciliação que parecia conferir origem edênica à identidade. Imaginava-se a nação como se fosse possível cancelar, com os novos símbolos, e apagá-lo, o conjunto de divergências que nos diz respeito. No traçado da particularidade brasileira, se pretendia apresentá-la, de um lado, como cor local fascinante, de outro, sob a forma do Estado-nação.2

O Romantismo de Iena pensava a natureza como construção do sujeito,3 na esteira de uma reflexão pujante desencadeada por Rousseau, como adiante se verá. Em contraposição, e ainda que não fizesse só isso, o Romantismo brasileiro se extasia diante da natureza vista como cor local, tornando-a categoria identitária quase hegemônica. De uma forma própria, com isto retoma o exotismo com que fomos cotados pelos europeus, de fora para dentro, invertendo-lhe o sinal, de dentro para fora. Boa parte de nosso Romantismo parece dizer que sendo exóticos—habitantes de um outro lugar—é que somos, à luz da diferença de uma Europa que, na figuração da paisagem, teria ficado para trás. Mas descolar paisagens, ressaltando o cromo, não liberta imaginários, nem encaminha a discussão da alteridade e da subjetividade.

Um fio de ranço ficava preso ao passado, arrastando pedaços de um jarro quebrado que se ocultavam debaixo do tapete. No plano explícito, parecia haver concordância: nossa terra tinha mais terra, mais beleza, mais amores. E sob a capa de um ufanismo promissor, o fundamento da nacionalidade se fazia raso. A idéia do lugar tomava o lugar das idéias. A busca de fazer mais ou melhor que a Antigüidade, ao mesmo tempo superá-la e completá-la no que ela tem de inacabado ou no que ela não conseguiu realizar do ideal clássico que entrevia4 —aspiração considerada no projeto do grupo do primeiro Romantismo alemão—implicava uma meditação que as ações urgentes adiavam e que o preconceito das elites dificultava.

Só para ficar num exemplo, discutido noutro artigo,5 mesmo uma clarividente crítica de José Bonifácio de Andrada e Silva6 sobre o destino catastrófico que prevê para o Brasil, conduzido por uma elite despreparada, conta como elementos a destacar os mesmos parceiros da cena colonial—aristocratas, magistrados e o clero. A arraia miúda, coadjuvante quando muito, é peça rara na constituição das tramas romanescas principais e também na reflexão dos ideólogos da nacionalidade, mesmo quando se aventuram no pensamento crítico sobre a literatura. A reflexão teórica sobre a literatura em si mesma, ou a literatura, como queriam os jovens de Iena, comparece nos bastidores. Neste sentido, avulta o papel de Alencar. Avanço a hipótese de que em seus textos, ainda que sob o peso de algumas concessões e imperfeições, entrelaçam-se cintilações e reflexões que conduzem atilada perspectiva teórica e de consciência crítica tanto da literatura como um fazer em si mesma, quanto da prática social do segundo Império. Sob as sombras que apagam a tonalidade ufana com que louva o localismo e institui-lhe a presença, urde-se [End Page 2] uma rede de reflexão pertinente, por vezes melancólica, sobre a paisagem e a terra, o sujeito e a subjetividade como construções de linguagem.

Muitas vezes lido de forma um tanto preconceituosa, colando-se diretamente ao escritor o político e a seus escritos a realidade, sua narrativa surpreende pela qualidade de perspicácia diante dessas questões. Aparentemente ele teria embarcado, supõem alguns críticos, no mesmo roldão, podendo-lhe serem apontadas contradições visíveis. Falta examinar, todavia, o que ressalta de material inconsciente, na forma como sua ficção trata dos impasses com que se defrontava a sociedade daquele momento para construir uma imagem que a habilitasse não só ao exercício da cidadania (sonho acalentado pela vontade-de-ser-nação da elite), quanto ao questionamento solitário do que seja a literatura.

Neste artigo quero examinar um dos aspectos da questão, o que me afasta do exame específico e mais demorado da obra de Alencar em si mesma, para construir uma base nova com que interrogar e interpretar sua ficção. Esta consiste em pressupor, como ponto de partida, que o romance tem, na matriz, o indivíduo em solidão. Sendo um tema, mas também uma forma interior da economia romanesca, a solidão é provocadora do mergulho no território da intimidade, fazendo-se condutora do movimento pelo qual a subjetividade se reconhece (e se abole, quando aliada à ironia7 ), tornando-se instrumento de reflexão e crítica.

Focalizarei um momento especial do conceito de solidão. Sua história mais completa resta ainda a ser realizada e esclareceria talvez muito das questões que nos afetam. Aqui nos interessa examiná-lo na confluência de olhares (inglês e francês) que lhe lançou o século XVIII. Duas poderosas imagens se encontram sob a força desse olhar: a do homem em isolamento (numa ilha deserta, procurando acumular fortuna pela experiência voluntária do exílio do torrão natal, numa das mais célebres metáforas do colonizador), e o homem ilhado em seus próprios sentimentos e perquirições (tecendo elos entre a natureza e o íntimo—mas ilimitado—de seus estados d'alma e gerando o caminhante solitário, antepassado do flâneur baudelaireano, encoberto de spleen). Da interlocução de duas leituras sobre um mesmo livro, o Robinson Crusoe, de Daniel Defoe extraem-se as duas miradas. Uma delas é de Ian Watt, e a outra, de Jean-Jacques Rousseau. Nesse cruzamento, avulta a percepção de que, para a modernidade, "no mundo novo, ser homem, é ser só."8

O apagamento da totalidade épica abre o pensamento para a discussão das categorias do indivíduo, da identidade e da liberdade na relação entre os homens e o mundo, preocupações que dão vida à narrativa de Alencar que, desde as "Cartas à Confederação dos Tamoios" tem consciência de que é preciso encontrar, findo o tempo das epopéias, o impulso poético que permita engendrar uma outra linguagem, ou a forma com que dizer do nascimento de uma entidade nova—o brasileiro—num mundo novo. Enlaçar a narrativa [End Page 3] do autor ao conceito de solidão como forma interna do romanesco implica, pois, necessária e primeiramente, refletir sobre a importância deste conceito na fundação da modernidade.

As dimensões de um artigo não permitem dar contas da globalidade de sua história. No entanto, nele é possível explicitar e enredar veios preciosos que interliguem a solidão aos três eus românticos, definindo um novo modo de ser e de refletir sobre a vida, o mundo e a arte. Do Iluminismo ao Romantismo, o Ocidente repensa o pacto do social com o natural e o individual, fora do regime absolutista e da certeza teológica do recorte do mundo. Investigar o pensamento de Rousseau, encravado na encruzilhada dessa passagem, é fonte de inestimável contribuição.

A questão fundamental, aqui apenas mapeada, consiste em demonstrar e discutir a importância do tema da solidão com vistas a criar instrumentos teóricos para pensar as contradições (políticas, sociais, culturais) brasileiras daquele momento. Ou seja, investigar como a solidão se mostraria nas cores verde-amarela, suscitando a revelação do que significou e como fez fermentar a construção da literatura no viés da aspiração da nacionalidade. O objetivo primeiro é construir um novo patamar conceitual que permita a releitura do projeto narrativo que Alencar esboça, na intenção de compreender o que nos dizem seus personagens acerca da pergunta:—O que é ser brasileiro no século XIX?

Peri/ Ceci, Iracema/ Martim, Jorge/ Carolina são alguns dos pares à deriva de uma relação em que presente e passado desenham um conflito: há um mundo anterior, que não se coaduna com o presente, e vem marcado pela iminência do perigo. Em A viuvinha, apaixonado por Carolina, na véspera do casamento, Jorge se encontra com o Sr. Almeida, velho amigo de seu pai, e seu tutor. Este o avisa: "—O senhor está pobre!"

Casar sem lastro o presente com o passado. Em Senhora, também o presente de Seixas e Aurélia tem contas a ajustar com a falta de lastro. Com o pouco de que dispõem, os heróis de Alencar têm que propiciar a origem do Brasil (Iracema e Peri) e liquidar as dívidas (Seixas e Jorge). Defrontam-se permanentemente com a solidão e a contradição entre puros sentimentos e a engenhosidade social, que deles demanda um equilíbrio instável entre o ser e o parecer. A escolha do tema da solidão, nesse contexto, adquire razão quase óbvia: os impulsos de mudança traziam a necessidade de figurar a idéia de um reinício, sob a forma da alegorização da origem de uma coisa e de uma causa novas. O tema da solidão, focalizado por diversos ângulos, cai como uma luva na mão de Alencar. "Tudo passa sobre a terra," frase final de Iracema, pode ser um mote em seu percurso narrativo que do nada9 procura criar mitologia e mundo novos, lembrando e esquecendo, rasurando e re-escrevendo o já escrito no palimpsesto de uma cultura. [End Page 4]

Este saber de experiências feito simula um começo, no encontro do indígena com o processo civilizatório, numa colônia que passa a "existir" no século XVI e leva três séculos à procura de si mesma. Ilha de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz e, finalmente, Brasil são os três nomes desse continente solitário visitado por europeus, habitado por índios e colonizado por portugueses. No século XIX, ainda convivendo com a instituição colonial, o país se transforma em corte. Filosoficamente despreparados, os intelectuais da época tematizam da forma que podem, nos oitocentos brasileiros, o "moi-même,"10 que procura criar do nada a civilização. Robinsons tropicais, inscrevem no imaginário cultural do país uma dramaturgia romanesca da subjetividade, que os liga à especulação (distintas, é verdade) que Defoe e Rousseau haviam lançado na Europa dos setecentos.

Duas chaves desse instante—duas revoluções—estão, em nossa hipótese, na Inglaterra e na França. A primeira, a revolução industrial, era decisiva para os destinos do capitalismo. A França, por outro lado, promoveu a revolução de seu tempo, não mais uma revolução com minúscula, mas um marco para todos os países. Suas repercussões ocasionaram levantes que conduziram à libertação da América Latina depois de 1808.11

Daniel Defoe ilustra o exemplo inglês, pela importância de seu Robinson Crusoe, hoje visto como a obra que contribuiu para implantar um dos mais fortes mitos do individualismo ocidental. Da França, vem Rousseau, pela forma como trata os dilemas da relação entre a razão iluminista e o mergulho precursor no "território da intimidade." E pela maneira como enlaça, numa tensão perpétua, o social e o natural, que encontra em sua alusão ao Robinson Crusoe a figuração da aliança e do contraste entre o eusocial (o cidadão do novo contrato) e o eu individual (a dimensão na qual se debatem forças que impulsionam a subjetividade).

Em 1719, Daniel Defoe reservara ao personagem uma ilha deserta. Quarenta e três anos depois, observando uma discordância entre as palavras e os atos dos homens, Rousseau pressupõe que a cultura estabelecida nega a natureza e que a civilização, longe de iluminar os homens, obscurece valores. Diante disso, interpreta que o personagem Robinson,vivendo em solidão, representa para os leitores a oportunidade de experimentar o mundo a partir de valores autênticos. Assim, nas páginas do Émile, publicado em 1762, considera que "[e]ste livro será o primeiro que irá ler o meu Emílio; sozinho irá compor, durante longo tempo, toda a sua biblioteca e nela sempre terá um lugar de destaque."12 A situação, como que pré-reflexiva, do personagem, ao manter com a natureza um contato regido apenas pela necessidade, parece levar Rousseau a uma leitura apoteótica da obra de Defoe.

Provavelmente a conheceu na tradução de 1720, ou na adaptação de Saint Hyacinthe e Justus van Effen, feita na medida do gosto literário da França [End Page 5] daquela época.13 Nas duas hipóteses, a versão que teria chegado a Rousseau, segundo Ian Watt, redunda numa apologia da natureza. Um exemplo disso é que, a certa altura, quando o personagem vê o milho pela primeira vez, a edição francesa faz com que ele exclame: "Ó Natureza!" (Watt, Mitos 181). O valor que Rousseau atribui ao texto, no Émile, e as numerosas referências ao estado de solidão num lugar isolado, mas fértil e acolhedor, encontradas nos Devaneios do caminhante solitário, no qual é aludido algumas vezes, revelam a grande admiração de Rousseau pelo romance (melhor dizendo, por sua maneira de interpretar o romance de Defoe).

Nascido em 1712, Rousseau teria em torno de oito anos quando a obra foi traduzida para o francês. É impossível que Robinson Crusoe constasse entre os romances que herdara da mãe. Não tinha sido, portanto, a partir do personagem de Defoe que o menino Rousseau plasmara sua alma, pois, de acordo com o que diz em Asconfissões, por volta dos seis anos começara a ler com o pai, depois do jantar, os romances deixados por sua mãe, morta quando ele nascera. Da prática, datava a "consciência de si mesmo."14 Muito mais do que memórias, as confissões anunciam que a reflexão de Rousseau passa a trabalhar com a rememoração, numa linha que será levada por Proust ao seu ponto literário máximo.

Ao afirmar:—"Ignoro o que fiz até os cinco ou seis anos. Não sei como aprendi a ler; lembro-me somente das minhas primeiras leituras e do efeito que me produziram: é o tempo de onde começo a contar sem interrupção a consciência de mim mesmo"15 —este fragmento de As confissões deixa entrever um dos motivos de Rousseau querer que Emílio aprenda da vida e não dos livros. É o julgamento do moralista que o leva à conclusão. O aluno, aos quatorze anos, não deverá ler senão o Robinson Crusoe a partir da crença de que o estado de natureza seria capaz de fazer com que o homem vivesse em equilíbrio, não o opondo ao mundo, nem a si próprio (Starobinski 37).

Os desejos, a linguagem, tudo o que os livros podem despertar e desencadear—as emoções bizarras a que ele se refere—devem ser contidos e adiados. Desta forma, o homem experimentaria um "[...] contato límpido com as coisas, que ainda não é turvado pelo erro. [...]. A esse estado em que se supõe que o homem viva aquém da distinção do verdadeiro e do falso, Rousseau concede o privilégio da posse imediata da verdade" (Starobinski 37- 38).

Nas páginas do Émile, justifica-se a razão da escolha desse livro-ideal, revelando a suposição de que Robinson, em sua ilha deserta, sem contar com ajuda de ninguém ou de instrumentos, "consegue assegurar a própria sobrevivência [...]. O que primeiro tentei [...] foi fazer que a ilha deserta se tornasse real [...] como se estivéssemos na situação de um homem isolado [...]"(239).

O homem solitário numa ilha deserta, gozando de "sentidos puros, isentos de ilusões," o que Rousseau identifica como "a plenitude," seria para ele [End Page 6] um eloqüente juiz da utilidade das coisas. O compromisso do Émile parece ser o de definir estratégias para que o futuro cidadão venha a ser capaz de extrair uma utilidade para a vida prática, da qual verdadeiros valores pudessem derivar. É pela "relação sensível com a utilidade, a segurança, a conservação e o bem-estar que Emílio deve apreciar os corpos da natureza e os trabalhos dos homens. Assim, em sua visão, o ferro deve custar mais do que o ouro e o vidro valer mais do que o diamante; [...]" (242).

Leitor da República, que considerava o mais belo tratado de educação já produzido, Rousseau estava convencido de que o homem mais vivido não é o mais velho, mas o que melhor tivesse experimentado os valores autênticos da vida (Émile 40). É desse modo que Robinson lhe surge como o modelo por excelência para o homem abstrato, representado no Emílio como aquele que deve saber tudo o que lhe seja útil, "e não saber senão isto" (241).

Para aproximar-se do natural e afastar-se da opinião, segundo ele arbitrária e contaminada pelo preconceito, buscava ancorar a educação (de um aluno só aparentemente particular, visto que através dele representava o homem universal do Contrato social publicado no mesmo ano do Émile) em princípios que relacionavam as atividades às necessidades.

Na primavera-verão de 1777, Rousseau escreve a sétima caminhada de seus Os devaneios do caminhante solitário.Com mais de sessenta e cinco anos e meditando sobre as disposições de sua alma diante das situações da vida, remete ao Robinson Crusoe, quando se refugia na recordação de uma antiga viagem através da cadeia de montanhas do Jura, entre a França e a Suíça. Lembra-se de que se havia posto a devanear mais à vontade, "pensando estar num refúgio ignorado por todo o universo, onde os perseguidores não me descobririam [...]. Comparava-me a esses grandes viajantes que descobrem uma ilha deserta [...]; considerava-me quase como um outro Colombo"(Os devaneios 100).

A ilha deserta se metamorfoseia na descoberta de um recanto ignorado do universo, em completa solidão (no mesmo texto Rousseau vê que se equivocara, pois perto dali havia uma fábrica de meias). Tanto no primeiro sentido atribuído à ilha, no Émile—como espaço prático de aprendizagem dos valores da necessidade—; quanto no segundo, que releva de Os devaneio do caminhante solitário—de espelhamento entre a natureza e o eu interior, recolhido em si mesmo, em busca de paz—a interpretação de Rousseau se desliga do caráter capitalista do self-made man de que também nos fala a narrativa da viagem do náufrago Robinson, com seus vinte e oito anos de dura faina numa ilha inóspita, em que se encontrava por ter-se decidido a abandonar a casa paterna em busca do sucessoeconômico que o levasse além da mediania de uma vida confortável. Ao contrário, em Os devaneios do caminhante solitário, a ilha é lugar de memória e de linguagem, e vai-se tornando duplo e máscara de uma dimensão íntima e isolada onde o eu se enlaça em si mesmo. [End Page 7]

Já na quinta caminhada, a ilha se metamorfoseara no locus amoenus que interessa aos que gostam de perder-se na própria interioridade, movidos pelos encantos da natureza ao mergulho cada vez mais profundo. Progressivamente, a narrativa de Rousseau estabelece o vínculo entre o eu, a natureza e o estado de devaneio delicioso, "em que a noite me surpreendia sem que o tivesse percebido [...]. De tempos em tempos nascia alguma fraca e curta reflexão sobre a instabilidade das coisas deste mundo do qual a superfície das águas me oferecia a imagem [...]"(Os devaneios 75).

O fragmento acentua marca fundamental do pensamento de Rousseau, confirmando a sutil observação de que "[c]om a reflexão termina o homem da natureza e começa 'o homem do homem'" (Starobinski 39). O estado reflexivo, ainda que visto por Rousseau como contrário à natureza, conduziria, paradoxalmente, a um mundo inquietante e contraditório, no qual a transparência, que ele tanto busca e identifica como verdade, se põe diante do obstáculo, transmudado em opacidade e melancolia. O "devaneio delicioso," nomeado devaneio desejante por Starobinski, não pode fugir ao seu próprio poder de ímpeto e de excesso. Por mais que Rousseau queira sugerir que o recurso ao devaneio o remete à tranqüilidade, pois suspende a agitação do pensar, não é bem isto o que ocorre. Com o recuo dos anos, a imagem da vida estável e limitada"torna-se atraente por sua própria impossibilidade. [...] Assim, surge um horizonte de nostalgia maravilhada, que oferece a imagem da felicidade em uma vida que não foi vivida"(Starobinski 349).

A busca da comunicação total e da confiança—o que o levara a teorizar sobre a moral, no Émile, e a abrir publicamente os seus segredos em As confissões—faz com que a obra de Rousseau, do início ao fim, tematize o fio de um paradoxo: de um lado, almeja a transparência, sob a forma do paraíso da recíproca e plena interação; de outro, emerge a consciência de que o próprio mundo muda incessantemente de aspecto, tece véus que encobrem, entre outras coisas, a confiança, a inocência e a simplicidade, obscurecendo o valor-em-si da verdade. Com Rousseau, a linguagem tornou-se o lugar de experiência e de meditação, pois ele "[...] inventou a atitude nova que se tornará a da literatura moderna [...]; pode-se dizer que ele foi o primeiro a viver de maneira exemplar o perigoso pacto do eu com a linguagem: a nova aliança na qual o homem se faz verbo" (Starobinski 207). Quando Rousseau recomenda o Robinson Crusoe, na obra de 1762, e quando o retoma, na de 1776- 78, publicada postumamente, este mundo conflituoso se abre para uma leitura na qual o conceito de solidão empresta ao texto de Defoe níveis inusitados de significação e riqueza.

Lido por Ian Watt, o personagem é visto como a metáfora do homo economicus, a abrir as portas do individualismo na vertente que dele conhece a economia do capitalismo. Filho de um bem-sucedido comerciante alemão que se estabeleceu na Inglaterra, Robinson se sente, desde muito cedo, [End Page 8] atraído pelo mar. No dia 1o de setembro de 1651, aos dezenove anos, parte do porto de Hull em companhia de um amigo. Ao referir-se a esta parte da trama, Ian Watt compara-a com duas célebres passagens do cristianismo: o pecado original e o arrependimento e volta do filho pródigo ao lar paterno. Mas, no caso de Robinson, o que se dá é a inversão. Nem ele volta, apesar do naufrágio, nem se arrepende.

Surgido em abril de 1719, o longuíssimo título da obra de Defoe dá uma espécie de resumo das peripécias do personagem:

A vida e as surpreendentes aventuras de Robinson Crusoe, marinheiro de York; que viveu vinte e oito anos completamente só em uma ilha desabitada na costa da América, perto da foz do grande rio Orinoco; atirado na praia por um naufrágio no qual morrem todos, exceto ele, com um relato de como foi afinal curiosamente libertado por piratas. Escrito por ele mesmo.

(Watt, Mitos 151)

Robinson sofre um primeiro naufrágio do qual todos se salvam. Durante a tempestade, temendo morrer, planeja voltar à casa do pai e reconhecer seu erro. Quando a tempestade amaina, o "filho arrependido" cede lugar ao aventureiro ambicioso e, assim que chega a Londres, embarca novamente, dirigindo-se à África. A aventura se revela lucrativa, e ele resolve continuar, sendo então capturado por um pirata turco. Preso durante dois anos, escapa junto com um jovem mouro, Xuri, de quem se torna amigo, embora vá adiante vendê-lo, sem qualquer escrúpulo. Recolhido por um navio português, vem para o Brasil, onde cultiva tabaco e açúcar. Trabalha arduamente quatro anos e prospera. Querendo conseguir ainda mais, toma outro navio para a África e novamente naufraga. Único sobrevivente, é levado pelas ondas para uma ilha próxima. Consegue, num rasgo de sorte, voltar ao que ainda restara da embarcação e, antes que afunde, dela retira provisões, caixas de ferramentas e armas de fogo.

Robinson enfrenta todo tipo de infortúnios, dentre eles um terremoto e febres tropicais, dos quais sempre se recobra. Trabalhador incansável, consegue construir uma cabana, mantém um diário e chegará a ter uma casa de campo, erguida noutra parte da ilha. No décimo-quinto ano, ainda solitário, mas dono de plantações e bem instalado, descobre a "marca de um pé na areia" e depara com restos de ossos, crânios, mãos e pés humanos. Vê canibais e deles escapa, encontrando Sexta-Feira, indígena que, salvo por ele, torna-se seu escravo. Planeja construir uma embarcação para sair dali. Antes que isto ocorra, invasores aportam na ilha e, numa operação quase militar, compartilhada por ele e seu servo, consegue vencer quase todos, exceto um espanhol e um outro indígena, que descobre ser o pai de Sexta-Feira. Juntos, continuam o plano de fuga, adiado para conseguirem maior quantidade de suprimentos. Deus ex-machina, surge um grande navio europeu. Estimulando um motim, [End Page 9] Robinson consegue, através de complicadas negociações, embarcar com Sexta-Feira para a Inglaterra, levando consigo os bens acumulados. Chega a Londres em 11 de junho de 1687, após quase trinta e seis anos de ausência.

A Rousseau parece ter interessado apenas o Robinson na ilha, solitário, lutando operosamente pela vida, identificando-se com o homem natural. Todavia, o apelo à solidão, por parte do herói de Defoe, consistirá em transformar a ilha e a própria solidão no espaço em que o outro acaba sendo metamorfoseado em mercadoria. A "ilha é para ele a utopia de um homem de negócios" (Watt, Mitos 170); e o encontro de Crusoe consigo mesmo, na ilha, resulta essencialmente de seu desejo de enriquecimento (Watt, Mitos 171).

A posição intelectual de Defoe remonta aos empiristas ingleses do século XVII, especialmente Locke e Hobbes, e expressa diversos elementos do individualismo de um modo mais completo do que fora feito, segundo Watt, por qualquer outro escritor inglês antes dele. A primazia do interesse econômico orienta a narrativa, que faz parte do novo modo de olhar as antigas relações sociais não-escritas. Nas novas relações contratuais escritas, a tradição e a idéia de coletividade se perdem. Sempre apoiada no motivo econômico, esta forma de organização social reverencia o contábil e o advento do individualismo. Visto por este ângulo, o desejo que o Robinson Crusoe representa pouco teria a ver com o que dele pressupunha Rousseau. Diante do mesmo homem em estado de natureza, mas focalizado por Ian Watt, o personagem Robinson caracterizar-se-ia como um dos mitos do individualismo moderno: "o herói tem um lar e uma família e os deixa pela clássica razão do homo economicus—é necessário para melhorar sua condição financeira; [...] tendência dinâmica do capitalismo, que tem por objetivo não apenas manter o status quo, mas transformá-lo sem cessar.16

Robinson Crusoe, para Watt, seria a afirmação confiante de um outro valor para a solidão: o de se tornar prelúdio da realização das potencialidades de acumulação de bens de cada indivíduo, constituindo imagem universal da experiência individualista.

Tornando a questão ainda mais provocante e rica, se em 1762 Rousseau lançara em dois textos a utopia do contrato burguês, a partir de 1764 descerraria o véu das confissões pessoais, liberando para o espaço público camadas ignoradas de si mesmo, prática antes reservada à confissão religiosa. Rejeitado o projeto social que elaborara, e frustrada a tentativa de se fazer aceitar e amar através do desnudamento, exila-se, a partir de 1776, na escrita de Osdevaneios do caminhante solitário. Nela se anuncia que o eu social e o eu individual se deblateram numa complexa elaboração da identidade. Apresentavam-se cindidos o "eu social" (o je) e o "eu interior" (o moi) que tentara, nas duas obras anteriores, articular numa unidade indissolúvel, mediada pela educação e pelo projeto de um contrato social não-absolutista. [End Page 10]

Segundo belíssima leitura que disso faz Starobinski, é preciso pensar a questão na dialética entre a textualização e a construção de identidades. Rousseau ia além de si mesmo, tornando-se o personagem-narrador do narrador Jean-Jacques. Desse modo, o conflito entre o eu social e o eu interior não é visto apenas como a indicação das adversidades de um homem real, mas revelação do dilaceramento do pactário de uma nova concepção de linguagem, que a obra do pensador antecipava, descortinando questões ainda hoje merecedoras de relevo e debate.

A busca de um estado de plenitude punha em marcha o refluxo de um vôo do personagem, que se dirige da consciência à memória e da sociedade para a natureza, numa negação ao mundo antes homenageado na utopia social do Émile. Na procura de escapar da dor, ocorre o afastamento do sujeito para regiões inconscientes, que se vão pouco a pouco tematizando no devaneio do caminhante solitário. Isto fazia da caminhada em direção à natureza algo de certo modo equivalente ao mergulho do ser em direção a si mesmo.

Nesta perspectiva, a escrita de As confissões e de Os devaneiosdo caminhante solitário não é apenas autobiográfica, abrindo-se em direção a uma espécie de fantasia retrospectiva em que o passado, a natureza e o aprofundamento da escavação interior se interligam. Produzindo não só a textualização do desencontro consigo próprio e com o outro, mas a busca de ultrapassar a biografia pela reflexão, Rousseau dava um salto de valor inestimável na abertura de uma trajetória fundamental para a modernidade. Com ela vai dialogar, por excelência, a poesia de Baudelaire. Ao retirar-se do domínio do ser em sociedade, o personagem dos devaneios se recolhe nos abismos secretos do "eu," atingindo a cena da fantasmagoria da escrita (nem mentira, nem verdade) do proscrito.

No contraste entre o personagem eufórico que credita ao homem natural a transparência da sinceridade, e o caminhante soturno e melancólico, que mergulha nos "estados d'alma," o imaginário de uma época traçava o contraponto entre a sociabilidade e a solidão, entre o real e a ficção, questão que se inscreverá no rosto mutante do Romantismo.

Duas ilhas de solidão, portanto, se fundiram (e confundiram) na colisão de projetos e de paradoxos do século XVIII se articulamos o Robinson de Defoe ao de Rousseau. A primeira aponta para a concepção de individualismo como aliado da tecnologia, da expansão e do desenvolvimento, coincidindo, de um lado, com a metáfora do individualista que se outorga criar, das ruínas da civilização, o novo pacto e, de outro, com a metonímia das relações de servidão que este mantém com Sexta-Feira. A outra, insulada na melancolia, rediscute a utopia do progresso e do Estado contratual, ameaçada pelos obstáculos que nele antevê o outro eu de Rousseau. Em compasso com o natural, o homem social habitara com eloquência e vaticínios auspiciosos as páginas do [End Page 11] Émile e sua articulação com o Robinson Crusoe. Pouco a pouco, na tessitura de Os devaneios do caminhante solitário, vai-se transmudando no homem desesperançado, que quer retornar a um estado primevo de quietude e harmonia entre o ser e o parecer.

Acirrados os limites da subjetividade, o estado de natureza tornava-se incompatível com a cultura estabelecida e a obra pretendida passava a necessitar de conversão para um mundo interior menos solar, mais errante e escorregadio. E, se aqueles que se refugiavam na Igreja podiam manter o silêncio e a solidão, o caminhante solitário passa a entrever que o que pensa só tem justificação em si mesmo, o que o obriga a retomar incessantemente a palavra, e a derrarmar-se para dentro dos limites de seu próprio eu, o que vai cada vez mais tornando opacas as relações entre a solidão e a palavra.

O que é dramático em tudo isso é que o personagem-caminhante (de) Rousseau não quer apenas singularizar-se e mostrar a sua diferença em relação aos "detratores." A tensão trágica resulta da necessidade de fazer coincidir a todo momento sua solidão com o bem e com a verdade, tais como os reconhece em seu foro íntimo, mas ambicionando que assim também estes possam ser reconhecíveis por todos. "Rousseau se estabelece na solidão a fim de poder falar legitimamente em nome do universal" (Starobinski 52).

E aí ele muito se distingue dos Iluministas, que cancelam a diferença, em nome do universal e da semelhança. Ao elevar a razão ao status de autoridade, o Iluminismo, para libertar os homens dos preconceitos do passado, produz, na visão de Hannah Arendt,17 teorias de emancipação que predizem e evocam a experiência, o mundo, as pessoas e a sociedade, dando-lhe uma coloração de realidade. Isso cria um problema, pois a experiência pressuposta pode cair na invenção desta, ou seja, na dificuldade, ao se pensar o geral, de incluir a categoria da particularidade.

Rousseau, no Émile, distingue a perspectiva. Mesmo procurando valores gerais e convencido da necessidade de pressupor um homem universal, detecta que a discussão sobre o geral se enriquece e amplia ao dialogar com a contingência histórica, abrindo-se à particularidade. Considera, pois, a singularidade dos indivíduos e da vida prática. Sua obra se marcará dessa preocupação, daí surgindo os matizes de uma impressionante "caminhada" rumo à interioridade do eu, que irá repercutir no Romantismo. No entanto, o pensar que ricocheteia sobre si mesmo e se faz pela incessante escavação da intimidade singular, pode, em Rousseau, desencadear um outro risco: o de, por outra razão que não a que ameaça a abstração generalizante do Iluminismo, provocar o isolamento do mundo exterior, fazendo que o sujeito se entrincheire "diante do único objeto 'interessante': o próprio interior" (Arendt, Rahel 21).

Os intelectuais do século XIX no Brasil parecem conhecer Rousseau através da apropriação que dele faz Bernardin de Saint-Pierre. Não há, creio, [End Page 12] nenhuma influência direta de seu pensamento em Alencar. Perpassa-lhe a imaginação, e a de seu tempo, uma versão atenuada do "mito do bom selvagem," sem nisto se considerarem contradições, paradoxos e articulações que, na obra do genebrino, se enlaçaram na constituição de sua teoria. A época também não demonstra, em romances e textos críticos, conhecer as inter-relações que o bom selvagem manteria com o eu social e o individual, na tripartição dos eus românticos. Em que pese o fato, é surpreendente como a narrativa de José de Alencar consegue captar, com inteligência, e tematizá-las, as duas matrizes mais evidentes—inglesa e francesa—do tratamento do conceito de solidão aqui examinado.

Ressalvando-se não existir, em Alencar, intenção filosófica no enfoque do problema, sua narrativa aborda a questão de forma sensível, tornando-a forma interna do romanesco.18 Seja como insulamento (com vistas ao cálculo e à acumulação, como na visão do Robinson apresentada por Watt), seja como isolamento (o mergulho na interioridade, tal como é dominante em Rousseau) a solidão é potente agenciadora de sentidos e de questionamento, na forma e no conteúdo dos romances de Alencar. Ela produz, por vezes, um interessante efeito de estranhamento. No limite deste artigo, tratarei de como isto se dá em Senhora e, a seguir, em dois outros romances histórico-indianistas—Iracema e O guarani. Pensemos em Senhora.

A narrativa matiza o jogo do interesse econômico que obscurece o valor-em-si de Seixas e de Aurélia, cuja individualidade fica submetida ao valor-de-mercadoria que rege o pacto social vigente. Quando se volta para o particular, no entanto, a caminhada em direção ao interior das personagens, que permitiria considerar os valores intrínsecos de cada um, e estabelecer uma discussão do problema, esbarra numa pincelada de diluição. A protagonista se entrega ao amor numa inversão das relações de vassalagem, enquanto Seixas reflete o patriarca. De senhora do dinheiro a serva do amor, o romance talvez conceda ao leitor a suspensão do projeto reflexivo que poderia ter-se ampliado. Apesar do "final feliz" resta, todavia, a tensão entre modelos gerais de eficiência social e as forças mais sutis que levariam ao mergulho na interioridade, tornando-o instrumento crítico.

Seixas não chega a ser o banido e proscrito, o ser sem-morada, que corta os laços com o social, visto em Osdevaneios do caminhante solitário, mas o "pecado original" da ambição o estigmatiza e revela o mundo nostálgico do que resta em latência nas trevas, como forças opacas, vivendo das sombras inquietantes da recusa de Aurélia. Ao contrário de Robinson, Seixas se arrepende e, se acumula dinheiro, não o faz por razões contábeis ou individualistas, mas para recuperar-lhe o amor. O desfecho do romance, todavia, desativa a força crítica daqueles dois seres antes em solidão. Reunidos pela atração do amor idealizado, perdem densidade, esbate-se a tensão e os dois retornam à transparência do mundo. [End Page 13]

Abrir-se para a extrema intimidade do eu teria sido uma boa forma de encaminhar a construção dos personagens e de contornar a redução da carga de problematização do romance, estancada pela união venturosa. Se o voltar-se para dentro de si mesmo de cada um dos protagonistas não passou de um meio, antes de um fim, e não conduziu à escavação da questão da alienação inscrita na trama, a escrita de Alencar fixa, de certa forma, no devaneio desejante dos dois, o "ser de linguagem" de todos os processos de rememoração. Nesta linha de reflexão, a linguagem—como carência e plenitude, simultaneamente—é tudo o de que dispõem Seixas e Aurélia. Mas não é o bastante para redimí-los da perda das ilusões. A fratura entre a linguagem e o vivido é, na obra, tornada moeda, literalmente.

Na batalha textual que travou, Alencar, escritor e polemista, ofereceria ao Romantismo brasileiro formidável vertente de inquietações políticas, filosóficas e literárias, desdobradas a partir da tematização da solidão, e através da qual a sociedade dos oitocentos constituiria e ampliaria a paisagem de suas indagações.

Nos estudos que tenho feito sobre sua obra, tem-me chocado a dificuldade da crítica de lê-lo fora da relação quase mecânica entre o possível conservadorismo político do autor e sua produção literária. Na tentativa de focalizá-lo em outra pauta, quero evocar que o tratamento que em seus textos é dado à questão da solidão abre para a crítica literária um importante desafio: o de se relerem os impasses melancólicos que seus personagens enfrentam, em diálogo com a proposta de Rousseau. E, a partir daí, reler-se a própria fortuna crítica de seus textos na cultura brasileira e as concepções de identidade que deles emergem, questões cujo desenvolvimento, evidentemente, escapa dos limites deste artigo.

A solidão é quase sempre evocada na obra de Alencar de maneira dúplice. Num primeiro nível, é forma de expressão das dúvidas e isolamento do novo país diante da incerteza de rumos. A procura de desprender-se do complexo colonial de que fizera parte vincula-se ao destino dos personagens. Indígenas cheios de virtudes, eles problematizam os dilemas vividos, em nosso século XIX, por um eu cindido entre a cidadania e os desejos individuais. Num segundo nível, no novo pacto brasileiro, a solidão tematiza a busca de um novo código e dos tropeços para definir, implantar e administrar a "hipótese Brasil," a partir de modelos ao mesmo tempo autóctones e importados.

Há uma melancolia recalcada na forma romanesca alencariana. A nostalgia de que fala Novalis e que o viajante, o exilado e o deslocado conhecem e carregam: a saudade de uma aspiração que não se atinge: a de estar em toda a parte como em sua casa, como na carta ao Dr. Jaguaribe, apensa ao final de Iracema, em que o narrador aspira à modorra da rede e ao à vontade nordestino perdido. [End Page 14]

Sua obra romanesca nos conduz, portanto, de volta à matriz das solidões. Ela é sintoma de uma laceração entre o interior e o exterior, significativa de uma diferença essencial entre o eu e o mundo, de uma inadequação entre os sonhos dos homens, sua alma, e a ação que lhes permite a máquina do mundo, textualizadas, por exemplo, na saudade e na solidão que atingem, por razões e com rendimentos distintos, Iracema e Martim.

Afastada de seu povo, ao fugir com o amado, Iracema abandona, até certo ponto, o estado de natureza. Sem os "seus," segue o guerreiro branco. Este também vai deixá-la, partindo com Poti, em campanha. O estado de natureza com que a heroína a partir disso se defronta é o da solidão de um eu cujo destino se revela interrompido. Não pode voltar atrás, nem ir mais adiante. Até o retorno de Martim, Iracema tem diante de si a hipótese regressiva (e mortal) de retorno ao estado mais primitivo do primitivo: o de identificar-se com o indiferenciado, até definitivamente refluir à dimensão de terra-mãe, que a enterra.

À beira do penhasco, Martim lembra, em solidão, da moça loira distante e da convivência social de que precisou abdicar, na aventura da colonização. Penetra no mundo natural, mas dele não participa, senão como ameaça: leva o desconcerto à tribo de Iracema e, no concerto das nações indígenas, implanta a mairi dos cristãos.

Os personagens de Iracema, como os de O guarani, e a localização da casa de D. Antonio de Mariz, estão sempre na iminência do abismo. Associado às águas do rio que não deságua no mar, Peri (como Iracema) não se abre ao comércio das nações, nem ao da urbanidade. Pelo conluio obscuro da vida natural com a razão social, encontra-se impedido de radicar-se num espaço que não o da natureza selvagem. E nela é condenado a ficar retido pelo código de um processo civilizatório que confere apenas a Ceci (e aos de sua casa, de Mariz) o poder de dupla mobilidade. Estabelecer moradia na selva e na cidade, ou nos espaços internos e externos ao mundo citadino é prerrogativa vedada ao homem natural, excluído.

Na filosofia que o embasa, e na arte com que encarna sua forma, o romance de Alencar põe em circulação a luta desigual, jamais vitoriosa, do homem natural com a potência de forças que ele não domina, no confronto de seus desejos, suas perdas e o horror da morte. Em suas páginas se encena o drama da construção identitária de uma comunidade imaginada em que fragmentos da trajetória de uma identidade em crise ecoam, como ruínas de um antigo texto soterrado pelo "carro triunfal" do vencedor.

Se "Tudo passa pela terra" (Alencar 57), o mito se transmuda em história, na confluência do corpo morto da mãe, a virgem de Tupã, com o silêncio reservado ao filho, ícone de uma pesada ausência: o brasileiro Moacir vive ao custo do corpo de Iracema, enterrada sob a força de uma outra fecundação, a [End Page 15] da mairi dos cristãos: "Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco [...] A mairi que Martim erguera à margem do rio, nas praias do Ceará, medrou. Germinou a palavra do Deus verdadeiro na terra selvagem e o bronze sagrado ressoou nos vales onde rugia o maracá" (Alencar 57).

Locus nada ameno de uma autoctonia fraturada, o corpo de Iracema recua à condição de sombra melancólica, significante que percorre e, subterraneamente, corrói, o tom de outra forma eufórico de uma narrativa urdida sob o signo das identidades em solidão. Reserva-se aos dois personagens maiores da galeria histórico-indianista de Alencar o trágico movimento para dentro de si mesmos, até se confundirem com a natureza que, se os concebeu, irá retê-los e, num certo sentido, engolfá-los em seus domínios. Não é de pouca monta o que Alencar realiza ao tematizar a solidão como lugar da origem da nacionalidade. Ao fazer isto, ele recupera, provavelmente sem saber que Rousseau já o fizera, o questionamento da transformação, em mercadoria, da moeda cultural por excelência, o homem pactário do novo contrato do Estado-nação.

Alencar trazia à luz a discussão de um tópico extremamente problemático e não o representava apenas como mais um intelectual envolvido com a elite vinculada, diretamente, ao projeto político do Império e do Instituto Histórico e Geográfico, instituição que, de modo oficial, implantava uma visão de brasilidade. De certa forma incompatibilizado com as elites nacionais, e sem contar com "o povo," até hoje uma categoria à margem de qualquer direito entre nós, o terreno em que se movia sua preocupação com a "hipótese Brasil" e as dores da nacionalidade era singular.

Se na França—"'[o] povo' identificado com 'a nação' era um conceito revolucionário, mais revolucionário do que o programa liberal-burguês que pretendia expressá-lo" (Hobsbawm 78)—; Alencar, no Brasil, dispunha apenas do programa, contraditório, de incipiente burguesia, cujo florescimento, no início do século, se marcava por face tênue na qual a nação brasileira era uma hipótese encravada na tradição portuguesa transplantada, por motivos político-econômicos europeus, para terras tropicais.

Tematiza-se e problematiza-se, nas narrativas de Alencar, a diferença que importa ao pacto social do Estado-nação recém-formado: a sutil distinção entre os que podem ocupar os domínios e fundar cultura e civilização—os que atribuem o valor de mercado, sem serem mercadorias—e aqueles que, pertencendo à terra, são condenados ao silêncio, à exclusão, à solidão. Diferentemente de como tem sido lido, o romance de Alencar narra, com mestria, os vazios e fraturas sob os quais se engendram os estigmas de nossas marcas identitárias. [End Page 16]

Lucia Helena

Lucia Helena é professora titular de Literatura Brasileira daUniversidade Federal Fluminense na graduação e Profa. de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na pós-graduação da mesma universidade. Pesquisadora 1-A do CNPq, atividade na qual conduz, atualmente, o projeto "Modernidade e contramodernidade: a escrita do subalterno," com vigência até 2006. Lecionou no exterior, na Europa e nos Estados Unidos (Bergamo, Pavia; na Italia; Lisboa, Portugal e nas universidades americanas de Rochester, New Mexico e Minnesota. Ela é autora de inúmeros artigos publicados em revistas especializadas no Brasil e no exterior. Dentre seus livros, destacam-se: Nem musa, nem medusa: itinerários da escrita em Clarice Lispector (1997, EdUFF); Totens e tabus da modernidade brasileira (Tempo Brasileiro; Prêmio APCA de Crítica, 1985); Narração-invenção: literatura e compromisso (Contracapa [CNPq], a ser lançado em junho de 2004); e A solidão tropical e os pares à deriva (no prelo). Lucia Helena criou, em 1993, e o dirigiu até 1994, o NIELM: Núcleo Interdisciplinar de Estudos da Mulher na Literatura, na UFRJ.

Notas

1. Lacoue-Labarthe & Nancy, "avant-propos" 11 (Grifo dos autores).

2. O século se abre repleto de mudanças bruscas, passando-se de colônia a nação independente sem instituições sólidas. Em teoria, a principal característica da burguesia européia dos oitocentos é a de ser "a primeira classe na história a ganhar proeminência econômica sem aspirar ao domínio político" (Arendt, As origens do totalitarismo. II. Imperialismo, a expansão do poder, uma análise dialética 15). No Brasil, a prática definia excessiva contaminação entre o público e o privado, não existindo um Estado-nação que, quase por definição, governasse "uma sociedade dividida em classes, colocando-se acima e além delas" (Arendt, As origens 15).

3. Cf. Lacoue-Labarthe & J.-L. Nancy 12. Os organizadores da antologia argumentam que a atenção à natureza, por parte dos primeiros românticos alemães, não consiste apenas em apreender a paisagem diante da qual se experimenta um sentimento sublime, ou de grandeza épica passada, ou os dois misturados. Também não consistia em só produzir uma sensibilidade capaz de responder a este "espetáculo" e de "fantasiar" o que ele evoca. O primeiro romantismo se constituirá, antes, numa leitura irônica das obras que exploram o "romantismo romanesco," inaugurando um projeto teórico muito mais amplo, que tratará de uma crise não só na literatura, mas social, moral, religiosa e política.

4. Lacoue-Labarthe & Nancy 20.

5. Cf. Helena, "A hipótese Brasil nas trevas de Alencar" 32-42.

6. Andrada e Silva 30.

7. Lukács 74.

8. Lukács 33.

9. Em "O mais antigo programa sistemático do idealismo alemão"-o manuscrito encontrado tem a letra de Hegel, é datado de 1796 e teria sido copiado de um texto redigido por Schelling-encontra-se a proposta de uma ética que não seria outra coisa senão um sistema completo de todas as Idéias, ou de todos os postulados práticos. A primeira Idéia mencionada é da representação do moi-même como um ser absolutamente livre. Com esta liberdade, consciente de si, surge ao mesmo tempo um mundo-a partir do nada-única verdadeira e pensável criação a partir do nada. Cf. Lacoue-Labarthe & Nancy 39-40 e 53. A concepção se nutre da mesma suposição que faz com que os primeiros românticos alemães considerem que sua atividade reflexiva e produção consista em "algo de inédito" (Lacoue-Labarthe & Nancy 21).

10. Cf. o texto atribuído a Schelling, referido na nota anterior.

11. Hobsbawm 73.

12. Rousseau, Émile 239. As demais citações da obra serão indicadas, em tradução minha, no corpo do texto.

13. Watt, Mitos 178.

14. Starobinski 346.

15. Rousseau, As confissões 15.

16. Watt, A ascensão 60.

17. Arendt, Rahel 20.

18. No sentido, como já vimos, que Georg Lukács atribui ao termo em A teoria do romance. [End Page 17]

Bibliografia

Alencar, José de. Iracema. São Paulo: Àtica, 1975.
Andrada e Silva, José Bonifácio de. Projetos para o Brasil. Org. Miriam Dollnikoff. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Arendt, Hannah. As origens do totalitarismo. II. Imperialismo, a expansão do poder, uma análise dialética. Intro. Oliveiros Litrento. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Documentário, 1976.
---. Rahel. Rahel Varnhagen, a vida de uma judia alemã na época do Romantismo. Trad. Antônio Trânsito e Gernot Kludash. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
Helena, Lucia. "A hipótese Brasil nas trevas de Alencar." Brasil/Brazil 24 (2000): 32-42.
Hobsbawm, Eric. "O mundo na década de 1780." A era das revoluções. Europa 17891848. 5a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
Lacoue-Labarthe, Philippe, e Jean-Luc Nancy. "avant-propos." L'absolu littéraire, théorie de la littérature du romantisme allemand. Paris: Seuil, 1978.
Lukács, Georg. A teoria do romance. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Editorial Presença, [s.d.].
Rousseau, Jean-Jacques. As confissões. Pref. e trad. Wilson Lousada. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d].
---. Os devaneios do caminhante solitário. Trad. Fúlvia Maria Luiza Moretto. 3a ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1995.
---. Émile ou de l'éducation. Paris: Garnier-Flammarion, 1966.
Starobinski, Jean. Jean-Jacques-Rousseau. A transparência e o obstáculo. Seguido de sete ensaios sobre Rousseau. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
Watt, Ian. A ascensão do romance, estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
---. Mitos do individualismo moderno. Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson Crusoe. Trad. Mário Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. [End Page 18]

Share