University of Wisconsin Press
Abstract

Os Sertões, by Euclides da Cunha, is considered a classic of Brazilian literature and one of the most powerful accounts of Brazilian reality. One of the keys to the contemporary success of the book lies in its questioning of nineteenth-century views of both the nation and modernization.

Hugo Achugar, referindo-se a antologias do século XIX, que considera como fundacionais, diz que esses textos deixam traços, como em um palimpsesto, nas nossas sociedades contemporâneas. É com este olhar que pretendo refletir sobre um texto também fundacional da cultura brasileira: Os Sertões, de Euclides da Cunha.

Texto canônico, Os Sertões é considerado, também e incontestavelmente, um clássico da literatura brasileira, com um lugar "já garantido" na cultura, no nosso imaginário social, sendo, inclusive, ponto de referência que condicionou a análise histórica e social do conflito de Canudos. Tomo por base a definição de Italo Calvino, que diz que um clássico é um texto que nunca põe termo ao que tem a dizer, vem até nós trazendo fortemente as marcas de leituras anteriores, como as que imprimiu na cultura que atravessou e que persistentemente, como um rumor, se faz ouvir no presente, mesmo numa época profundamente diferente daquela em que foi criado("aquilo que persiste como rumor mesmo onde predomina a atualidade mais incompatível"1 ). Assim, o texto que convencionamos chamar "clássico" representa em si um convite, às vezes, até insistente, a novos olhares que o desalojem de uma tradição petrificadora. Acrescento ainda que um clássico não o é somente por seus valores particulares ou intrínsecos, mas pelos questionamentos que pode nos fazer e para os quais não temos respostas definitivas e que podem, ademais, ser atualizados por diferentes leitores, transcendendo os limites de sua cultura, de seu tempo e os da língua em que foi escrito. [End Page 71]

Os Sertões é, então, um texto de fundação em um outro sentido. Ele se constrói como uma narrativa da nação, atrelando-se aos textos basilares que, no século XIX, conferiam um perfil duradouro ao imaginário cultural do país.

Modernização é uma palavra de significado vazio.

Especialmente na América Latina, com sua tradição política autoritária, os processos de modernização, mesmo quando representam avanços econômicos, são preenchidos com um sentido socialmente excludente e politicamente autoritário. Esse é um ponto que recorre, inclusive, quando se olham as conquistas do mundo atual, marcado pela globalização e pelo multiculturalismo. As condições de democratização da cultura englobam a reflexão sobre os seus sentidos históricos e sociais e sobre sua destinação. Assim, processo considerado o mais das vezes como exclusivamente político, a democratização é também, e talvez sobretudo, um processo cultural.

Os Sertões é um texto expressivo de um dos vários processos de modernização ocorridos no Brasil com a proclamação da República. Como tantos outros no país, também a onda modernizadora trazida pelo novo regime político se deu de modo não democrático.

Publicado em 1902, conheceu sucesso editorial imediato, transformando-se em leitura obrigatória para os estudiosos da literatura e da cultura brasileiras, tomado quase como um marco fundador da nação, por seu enquadramento épico, por sua característica analítica de saga da nacionalidade.

Um texto como esse guarda muitos desafios. Em primeiro lugar, porque há que se recuperar, para situá-lo, as matrizes européias e nacionais do seu pensamento. Depois, por não ser um texto de fácil leitura, vazado em linguagem científica. No entanto, tem despertado grande interesse nos dias de hoje, tendo sido traduzido e republicado em vários países europeus e nos Estados Unidos. Pode-se perguntar o porquê de tão grande interesse em semelhante livro, de vocabulário difícil, ancorado em teorias do final do século já desacreditadas pelo pensamento contemporâneo. Sua atualidade, talvez, pensando-se no Brasil de nossos dias, às voltas com um apressado e paradoxal processo de globalização econômico-cultural, pode-se insinuar a hipótese de que no que se considera de antemão e apressadamente como anacrônico e ultrapassado podem residir lampejos visando o nosso presente. Provavelmente isso ocorra com este livro que recoloca inúmeras questões para o Brasil de hoje. É um pouco tentando responder a esses questionamentos que este meu texto quer se construir.

No livro, é narrada a história do conflito ocorrido no fim do século XIX, em Canudos, povoado do sertão da Bahia, região extremamente árida e onde, ainda hoje, convive-se com a miséria, com a seca e com os freqüentes desmandos políticos. Ali reuniu-se, em finais do século passado, um contingente de seguidores religiosos do líder Antonio Conselheiro, um dos tantos beatos [End Page 72] que cruzavam e cruzam ainda hoje o sertão nordestino. Eram contrários à República. Na verdade, eram contra certas medidas tomadas pelo novo governo como o aumento abusivo de impostos e o sistema de pesos e medidas que prejudicavam os mais pobres. Mas, principalmente, eram contrários à separação Igreja/ Estado imposta pela nova ordem política, que instituía, entre outras coisas, o casamento civil, a secularização dos cemitérios e o registro civil de mortes e nascimentos. Antonio Conselheiro reuniu trinta mil pessoas, vítimas do quadro de desigualdades sociais e de disparidades regionais. Ainda que com poucos e primitivos recursos, enfrentaram e venceram sucessivos contingentes de soldados do exército, até terem sua cidade destruída e serem barbaramente exterminados em 1897.

Como correspondente de um jornal do sul do país, Euclides vai para a área do conflito, de onde envia suas reportagens. O país se assustava com a rebelião, usada, inclusive, como justificativa política para a perseguição aos monarquistas que ainda restavam na capital da República. Cinco anos depois de terminado o conflito, transforma suas reportagens em livro. Mas o intervalo entre as reportagens e a escrita do livro já apresenta um Euclides escritor muito diverso do Euclides repórter. No período que medeia as notas feitas durante a campanha e a publicação do livro, o autor, que construíra um andaime de conhecimentos especializados para sustentar suas idéias, calcadas no cientificismo e nas teorias racialistas tão hegemonicamente disseminadas à época, já se encontrava desiludido com a República que tanto defendeu nos seus inícios. Como ocorrera com boa parte da intelectualidade brasileira, também Euclides—um republicano de primeira hora—percebe os desmandos dos poderes republicanos, mais voltados para a defesa dos interesses das oligarquias no poder.

Os intelectuais contemporâneos de Euclides, como ele próprio, eram, na maioria, formados no sul do país, mais rico e mais desenvolvido. Quando assim não era, escreviam a partir do Rio de Janeiro, no cenário da rua do Ouvidor. Quase todos se impõem a tarefa de mostrar o país como uma totalidade, como um todo sem fissuras que comprometessem a nacionalidade.

A descoberta do sertão é, assim, um choque para Euclides. O sertão revela-se um espaço contraditório, que o narrador não consegue apreender e nem reconhecer como seu, ao mesmo tempo que, forçosamente, há que ser integrado no todo da nação (o caráter inapreensível do espaço dos sertões faz lembrar outro mágico criador: Guimarães Rosa). A geração intelectual de 1870, semelhantemente à anterior geração romântica, tinha como tarefa, no âmbito da cultura, delinear o perfil do homem brasileiro, amparada, agora, pela ciência. Segundo determinadas teorias científicas do período, o meio moldaria o homem, que seria um resultado dos condicionamentos do clima, das condições geográficas em geral, dos determinismos psicológico e racial. Mesmo nas descrições da natureza, que ocupam a primeira parte do livro, [End Page 73] Euclides desafia os estereótipos de explicação científica, pela força das imagens, pela linguagem contraditória com que apreende o espaço dos sertões.

Sempre segundo as teorias da época, o Brasil, para modernizar-se, para poder fazer parte das nações desenvolvidas, teria de submeter sua população a um processo de branqueamento uma vez que a raça negra influiria de modo negativo nos cruzamentos em que ocorresse. Essa população deveria ser "educada" pelas elites, levando-lhe os benefícios e a modernidade da "civilização." Como diz Angel Rama, para ser o receptáculo possível das fontes culturais européias, a partir das quais se construiria a sociedade civilizada, havia que se submeter o vasto território selvagem da América, impondo-lhe as normas de uma cultura urbana e letrada. A segunda parte do livro expõe, então, a luta de raças, explicando o indivíduo pelo seu corpo, "medicalizando" a cultura, opondo o homem do sertão ao homem do litoral. O raciocínio decorrente seria que, sob o clima tropical, com um povo miscigenado, não seria possível forma adiantada de organização social, econômica e política, argumento claramente justificador da dominação colonial e dos regimes autoritários.

Influenciado pelo darwinismo, o livro fala em "seleção natural." De Conselheiro, o líder religioso, são destacados aspectos mórbidos e doentios. A classificação que Euclides da Cunha faz da loucura revela a grande influência que sofreu da ideologia lombrosiana da época, principalmente do positivismo, que fez dela um dos mais importantes objetos de estudo. Loucura, degeneração e banditismo se misturam como traços de um mesmo perfil. Para Euclides, o clima excessivamente quente dos sertões geraria desequilibrados nervosos, formando uma sociedade primitiva que, cegamente, estaria propensa a seguir um líder fanático. Muito pouco se fala de causas sociais ou do respeito democrático à diferença. Aquilo que é diferente aos olhos do escritor urbano revela-se como anormal, como doença. O fenômeno das multidões urbanas que povoava o imaginário do século XIX, sobretudo no que se refere ao seu pretenso comportamento anormal, é aqui fortalecido pelo temor ao fanatismo religioso. Essas idéias também englobam conceitos de involução, de retrogradação de certos grupos sociais, "medicalizando" com essa visão o campo conflituoso da história.

Montado o cenário e descritos os participantes, a luta passa a ser entendida como a rebelião dos que foram deixados para trás na história e que não poderiam ter outro destino a não ser a destruição. Descreve a rebelião e como os estrategistas do exército, com seus armamentos sofisticados, foram vencidos várias vezes pelos jagunços, sertanejos ignorantes segundo a visão construída a partir do litoral. Diante do comportamento muitas vezes cheio de dignidade e coragem daqueles que qualifica como "mestiços degenerados" e, por outro lado, frente às atrocidades cometidas pelos soldados da República, pretensamente defensores da modernidade, Euclides entrelaça dois livros em um: faz a [End Page 74] defesa da República, com seu ideal de progresso e modernidade, mas tem que reconhecer que os jagunços não são tão degenerados como pensava, uma vez que se apresentam também com coragem e estratégias inteligentes.

A força do discurso de Os Sertões situa-se justamente na manutenção da contradição. Armado com as teorias racialistas e positivistas que caracterizavam a intelectualidade brasileira da passagem do século, acreditava o escritor que a República se instauraria e se expandiria, de modo inevitável, de acordo com as leis gerais da evolução positivista, baseando-se numa concepção da História como força inexorável. Por isso era seu defensor ardoroso. Em Canudos, porém, defronta-se com a realidade de um Brasil inesperadamente diferente. A partir da observação da terra e dos sertanejos e do convívio com o exército, relativiza as noções cientificistas, muitas vezes dando-se conta de que os papéis de representantes da barbárie e da civilização se intercambiam entre sertanejos e soldados. Ora heróicos e superiores, ora ignorantes e degenerados, os homens do sertão e do exército repartem os mesmos atributos. O uso pelos soldados, em determinado ponto da narrativa, das roupas abandonadas pelos sertanejos acaba por constituir-se em metáfora da paradoxal indiferenciação entre eles. Assim parece-me que, embora preocupado com a construção de um esquema explicativo para a nação e fazendo um esforço de adaptação das teorias européias em que acreditava, defronta-se, na realidade, é com a insuficiência da análise e do esquema teórico que montara. Talvez até à revelia do narrador, o deslocamento e o desnível entre a realidade, que a qualquer custo quer revelar e o que finalmente faz em seu texto transformam em crítica e denúncia um esquema de si justificador do colonialismo. Concilia, desse modo, contraditoriamente, a defesa da ciência e a perda de confiança nela, a modernidade política trazida pela República e os setores marginalizados do mundo moderno. Esses, para seu espanto, se recusam a entrar na modernidade. Essa mesma modernidade que os condena à destruição.

Vale lembrar que a mesma utopia modernizadora do projeto republicano embasou a construção de Belo Horizonte. Neste sentido, Belo Horizonte paradoxalmente assemelha-se à sua antípoda—Canudos—destruída em nome da República. Construção e destruição ocorrendo no mesmo ano, como bem nos lembra João Antônio de Paula, respondem a igual processo modernizador que indicava, de cima para baixo, autoritariamente, aqueles dignos de se tornarem cidadãos e aqueles que deveriam, em nome do progresso, ser varridos como atrasados pelo rumo inexorável da história.

Diante do quadro contraditório que constrói, a mestiçagem, antes somente criticada, pois era tida como elemento prejudicial à civilização, agora aparece como realidade perturbadora, transtornando o saber autoritário tão característico da intelectualidade e do grupo social dominante no Brasil. A menção final ao futuro estudo que se faria no crânio de Antônio Conselheiro, por exemplo, longe de referendar o discurso científico e depois de tudo o que [End Page 75] se expôs no livro, soa ironicamente para o leitor, como crítica. Sanidade e loucura são, desse modo, situadas numa zona fluida. Se, por um lado, rejeita o fanatismo religioso dos sertanejos como marca de uma cultura retardatária, por outro, aponta, nos que considerava como baluartes do progresso e da ciência, os traços de barbárie evidenciados no verdadeiro massacre empreendido pelos soldados.

Ora, como por fidelidade ao feitio da geração de 1870 que abraçava o ideal da literatura como missão, como intervenção na vida política e como espaço privilegiado da representação das particularidades brasileiras, Euclides não poderia fechar os olhos para o que estava vendo. Mas as afirmações contraditórias, sobre os diferentes personagens que atuam em seu texto, fazem dele um espaço de muitas falas. Mesmo à revelia do narrador, vozes outras circulam no texto além das vozes da ciência, da modernidade. Na verdade, faculta, na contramão da voz dominante do narrador, o espaço de expressão para os afásicos alijados do mundo da cultura letrada. Como são essas vozes contraditórias em si mesmas, a resultante literária é a presença constante da figura da antítese, de uma maneira exasperada de escrever, da enorme tensão dramática do texto até nos trechos mais descritivos. As antíteses conferem enorme força dramática ao literário, não resistindo à expressão da realidade que faz com que a rigidez e a racionalidade com que foram construídas sejam abaladas de forma definitiva.

Por tudo isto, ao tentar uma síntese do Brasil, um todo da nação, depara-se, ao contrário, com a contradição de uma nação esfacelada, com a presença de divisões inconciliáveis. Evidencia-se no livro que a modernidade tem uma face trágica: ela é um choque que destrói espaços-tempos insulados no esquecimento, que apresentam linguagens desencontradas, destruídas pela violência do Estado legal, baluarte da modernizaçã excludente.

Através do jogo de linguagem da literatura, misturam-se as cartas da História e o narrador acaba desarticulando o arcabouço científico sobre o qual se apoiavam suas teses. O literário aprofunda, transforma e desloca o saber científico que aparece como primeiro justificador do livro.

Volto, agora, à questão inicial: por que tamanho interesse num tal livro?

O que estará tal livro dizendo para uma época e para um espaço como os nossos, tão diferentes do tempo e do lugar onde se desenvolveu a "guerra" relatada por Euclides? Que leitura nova, marcada pelas questões da contemporaneidade, ele pode nos suscitar?

O próprio autor diz em uma de suas cartas que o escritor do futuro seria necessariamente um polígrafo. Pensando no perfil transdisciplinar que caracteriza as atuais tendências das Ciências Humanas, vê-se a atualidade de Os Sertões, entroncamento/ deslocamento de diversas disciplinas. O livro é simultaneamente considerado obra de Geografia—Euclides o chamou de uma "ficção geográfica"—de estudos da Religião, de Cultura Popular, de Ciências [End Page 76] Sociais, de História, de Antropologia, um ponto de inflexão de saberes os mais diversos, mesclando ciência e literatura, com caráter múltiplo e mesmo inclassificável no sentido do estranhamento que opera no próprio arcabouço teórico-explicativo que constrói. O trabalho de ficcionalização nele construído constitui instrumento rico para se pensar os modos de fazer, de dizer e de sentir a sociedade. Assim acontece com o elenco tão feliz de imagens ficcionalizadas do Brasil presentes no texto, evidência de que se pode recuperar a História da cultura por muitos caminhos, entre os quais o literário talvez seja um dos mais ricos ao revelar sua função de conhecimento, de crítica do real e de proposta estética de alternativas para ele.

Hoje, o sucesso editorial do livro deve-se possivelmente ao seu caráter atual com relação a questões que levanta: multiculturalismo, minorias religiosas, saídas políticas para as diferenças sociais e culturais e concepções que põem em dúvida as fronteiras entre sanidade e loucura. Como bem registrou Sérgio Paulo Rouanet, a leitura de Os Sertões guarda extrema atualidade pelos conceitos de civilização e barbárie que problematiza, pela simpatia pelos vencidos e pela dúvida sobre a ciência. O filósofo nos lembra que Euclides desenvolveu, cinqüenta anos antes de Adorno ou de Benjamin, a idéia de que a civilização se aproxima da barbárie e não pode a ela opor-se de modo absoluto. Mas, sobretudo numa época de descrença com relação aos paradigmas tradicionais, aquele proposto por Euclides significa uma alternativa para se reavaliar a questão da identidade cultural.

Um outro aspecto que hoje é visto como contraditório dentro do processo de multiculturalismo que vivenciamos é justamente o da democratização do acesso aos bens facultados pela modernidade advinda da globalização. Como nos alerta Canclini, há que se ter presente que nossa contemporaneidade, caracterizada pela disseminação pós-moderna e pela descentralização democratizadora, também se caracteriza pelas formas mais concentradas de acumulação de poder e centralização transnacional da cultura. Para nós se coloca, hoje, com agudeza, a questão do "para quem" se destinam os bens. Ou seja, se hoje redefinimos os conceitos de nação, povo, identidade, não podemos fechar os olhos para as contradições inevitavelmente presentes nos processos multiculturais e na situação de exclusão imposta a amplos setores de nossa população. Também Euclides defrontou-se com contradição semelhante: o intelectual do Rio de Janeiro, para quem os ideais republicanos e científicos eram sinônimo de modernização, quando constata a existência de um amplo contingente de brasileiros alijados do processo, acaba, finalmente, por se perguntar, e até à sua revelia, que progresso era aquele e a quem estaria servindo. Mesmo com a intenção explicitada de revelar a violência dos sertões, o escritor brasileiro acaba por evidenciar a violência do processo de modernização em geral, que, por ser excludente, desconsidera as diferenças. Apresenta, assim, uma nação compósita, dilacerada, cindida, mesmo que na [End Page 77] contracorrente do discurso dominante, que queria vê-la como inteiriça e sem conflitos. No caso desse clássico, é a ficcionalização do nacionalismo que introduz a contradição no diálogo intertextual com as teorias racialistas e positivistas que tanto marcaram seus contemporâneos. Sua linguagem—repleta de brasileirismos, de termos indígenas, de expressões populares—é um todo dos mais interessantes. Marca-a constantemente com arcaísmos da fala dos sertanejos, mais tarde recuperados também por Guimarães Rosa. Pode se revelar, pela análise da linguagem, as contradições que a exposição da tese quer ou pretende apagar. Talvez por isso mesmo, como diz Gilberto Freyre, o poeta, o profeta, o artista Euclides redimam os erros do Euclides cientista.

Por outro lado, a sua inclinação pelos vencidos encontra certa ressonância na simpatia contemporânea por todas as minorias oprimidas pela civilização moderna. Ao acabar por, finalmente, colocar em dúvida a capacidade da ciência para enfrentar essas contradições, põe-se em sintonia com a sensibilidade antimoderna e contra-iluminista. Registre-se que, de sua geração, muito poucos discordaram da voz geral, que incondicionalmente acreditava na ciência.2

Outro dado para tentar entender o sucesso atual da obra de Euclides e também lembrado por Rouanet é o interesse contemporâneo por magia e religião—como o fundamentalismo islâmico e as seitas messiânicas—o que faz do misticismo dos jagunços um prato dos mais saborosos para o novo multiculturalismo. Além disso, o comunitarismo (aquele adotado pelos seguidores de Conselheiro) como forma de solidariedade econômica e social pode ser uma saída socialmente válida para as grandes contradições que nos coloca o mundo contemporâneo já que foi um comunitarismo verdadeiro o que garantiu a subsistência e a sobrevida dos moradores de Canudos.3 Diferentemente daquilo que ocorreu com o Padre Cícero, a liderança e os princípios religiosos de Antônio Conselheiro afastaram os seus seguidores da política oligárquica e da exploração de qualquer camada dominante.

Ao enfatizar as diferenças entre o litoral e o sertão, Euclides perturba a noção de identidade nacional. A uma Nação que se queria una, indivisível, cordial, devolve uma face dilacerada, sem qualquer possibilidade de totalização ou síntese.

Paradoxalmente, no entanto, com essa imagem partida, acaba por escrever um texto que dá um sentido à Nação.

Maria Zilda Ferreira Cury

Maria Zilda Ferreira Cury é professora titular de Teoria da Literatura da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora em Literatura Brasileira (USP), e autora, entre outros, dos livros: Um mulato no Reino de Jambon: as classes sociais na obra de Lima Barreto (São Paulo: Cortez, 1981); Horizontes modernistas: o jovem Drummond e seu grupo em papel jornal (Belo Horizonte: Autêntica, 1998); e Navio de imigrantes, identidades negociadas. Coleção Memo Ensaio/Ficção (São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2002).

Notas

1. Calvino 15.

2. Como é o caso já emblemático de Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas e em O Alienista.

3. Villa 6. [End Page 78]

Bibliografia

Achugar, Hugo. "Parnasos fundacionales, letra, nación y estado en el siglo XIX." Revista Iberoamericana [Santiago: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana] 178-179 (1997).
Bloom, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Trad. Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Objetiva, 1995.
Borges, J. L. "Sobre los clásicos." Antología personal. Buenos Aires: Emecé, 1968.
Calvino, Italo. Por que ler os clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Canclini, Néstor García. Culturas híbridas: estrategias para entrar y salir de la modernidad. México: Grijalbo, 1990.
Carvalho, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Cunha, Euclides da. Os Sertões: campanha de Canudos. 27 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1963.
---. Hautes terres (la guerre de Canudos). Paris: Métailié, 1993.
Cury, Maria Zilda Ferreira. "Intertextualidade: uma prática contraditória. Ensaios de semiótica." Cadernos de Lingüística e Teoria da Literatura [Belo Horizonte: UFMG] 8 (1982).
Galvão, Walnice Nogueira. Gatos de outro saco. São Paulo: Brasiliense, 1981.
Hardman, Francisco Foot. "Brutalidade antiga: sobre história e ruína em Euclides." Estudos avançados [São Paulo: USP] 10.26 (1996).
Hoornaert, Eduardo. "O sonho dos espaços sagrados." Folha de São Paulo 21/09/7.
Levine, Robert M. O sertão prometido: o massacre de Canudos no nordeste brasileiro. São Paulo: EDUSP, 1995.
Paz, Octavio. El arco y la lira. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1992.
Rama, Angel. A cidade das letras. Trad. Emir Sader. São Paulo: Brasiliense, 1995.
Rouanet, Sérgio Paulo. "Canudos chega à Alemanha." Folha de São Paulo 19/06/95.
Santiago, Silviano. "Fechado para balanço." Nas malhas da letra: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Sevcenko, Nicolau. Literatura como missão:tensões sociais e criação cultural na Prim Rep. São Paulo: Brasiliense, 1983.
Sodré, Nelson Werneck. "Revisão de Euclides da Cunha." Os Sertões: campanha de Canudos. Por Euclides da Cunha. 27 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1963.
Ventura, Roberto. "Euclides da Cunha e a República." Estudos avançados [São Paulo: USP] 10.26 (1996).
Villa, Marco Antonio. "A aurora de Belo Monte." Folha de São Paulo 21/09/1997. [End Page 79]

Share