In lieu of an abstract, here is a brief excerpt of the content:

  • Dona Carminda e o príncipe*
  • Regina Rheda

* Original story in Portuguese, as published in the book Histórias Dos Tempos De Escola

(Regina Rheda et al, São Paulo, Editora Nova Alexandria, 2002)

Herófilo fugiu do Instituto de Educação Domingos Jorge Velho e se escondeu no bueiro. Do escuro, quieto feito pedra, viu passar a máquina vibrante e, de dentro dela, viu pularem humanos idênticos. Eles correram para o instituto de educação e saíram depressa, carregando o professor Aristides, que deram para a máquina engolir.

A diretora ofegava, os olhos na ambulância, as mãos empurrando os alunos. Arrumem suas coisinhas e voltem para casa que as aulas de hoje estão canceladas. E a cobra, dona Carminda? Vão para casa direitinho que eu cuido da cobra.

A diretora esperou ir embora o último aluno da sexta série C e tomou dois calmantes. A polícia era capaz de aparecer fazendo perguntas e dona Carminda teria que responder a todas com tranqüilidade. A polícia sempre lhe metera medo. Uma resposta desajeitada, uma reticência na voz, um tremor, e a diretora seria considerada suspeita, podendo ir para a cadeia, condenada por um crime que não cometera. Meudeus, uma cobra coral estava solta nas imediações do colégio e dona Carminda ficava ali, que nem uma mosca-morta, inventando dramalhões. Iranildes, veja o número do Centro de Répteis e Animais Peçonhentos na lista telefônica.

Dona Carminda derrubou o corpo na poltrona. Gostoso ter um corpo, deixá-lo cair no macio, sentir as pontas dos dedos, as plantas dos pés. Gostoso bocejar. Os calmantes estavam fazendo efeito. Outro milagre da ciência. Não fossem os animais sacrificados em laboratório, diria o professor Aristides, a medicina não estaria onde está e a senhora não teria [End Page 27] remédios para tomar. Anote o número que eu mesma ligo, Iranildes, e pode voltar para a sua sala.

Dona Carminda ficou olhando o número do telefone do Centro de Répteis e Animais Peçonhentos. Gostoso parar os olhos num número. Já, já ela pediria aos homens que viessem capturar a cobra. Sem a escravatura, a civilização também não estaria onde está, professor Aristides, e mesmo assim o trabalho escravo acabou sendo reconhecido como cruel e anacrônico.

Ele sorria um bigode, na galeria de retratos dos professores, sobre o arquivo de metal. Queria ter sido Doutor Aristides, biólogo ou paleontólogo, peagadê de Harvard, professor pesquisador em Yale, escritor de livros científicos. Mas o curso básico do Instituto Domingos Jorge Velho precisava mais dele do que Harvard e o professor nunca teve tempo de ir atrás de uma bolsa para estudar no exterior. Das três mulheres com quem casou e de quem se separou, nenhuma foi dona Carminda. Graçasadeus, suspirou a diretora. Gostoso suspirar. O Aristides costumava dizer que nunca se sentira pronto para assumir um relacionamento sério com ela. Graçasadeus. Para uma ex-atriz, com retrato no saguão do Teatro Municipal de Santa Cruz do Rio Pedroso, e diretora de um respeitável instituto de educação, seria constrangedor dividir a cama com um professorzinho alcoólatra, autor de contos de ficção científica sem pé nem cabeça nunca finalizados.

O professor Aristides tinha má fama na cidade. Sabia-se que ele chegava no trabalho bêbado e se reabastecia durante o expediente com uma garrafa de jurubeba guardada em seu escaninho. O que ninguém sabia, e dona Carminda desconfiava, é que ele roubava éter e benzina do laboratório do colégio para cheirar. Laboratório era modo de dizer. Tratava-se do banheiro de um pequeno galpão vazio que dona Carminda sonhava transformar num teatro, quando houvesse verba. O professor expandiu o banheiro, serrando a parede de madeira apodrecida que o separava do resto do galpão e criando outra parede com tapadeiras. Uma abertura entre duas tapadeiras permitia a passagem do laboratório para o resto do galpão. O banheiro, isto é, o laboratório, tinha...

pdf

Share