In lieu of an abstract, here is a brief excerpt of the content:

Reviewed by:
  • Um defunto estrambótico: Análise e interpretação das Memórias póstumas de Brás Cubas
  • Valéria Torres da Costa e Silva
Facioli, Valentim . Um defunto estrambótico: Análise e interpretação das Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Nankin Editorial, 2002. 167 pp.

Um defunto estrambótico é um livro elaborado, principalmente, para ajudar jovens leitores a adentrarem a ficção de Machado de Assis pela porta do curioso, estranho e fascinante mundo das Memórias póstumas de Brás Cubas (1880/ 81) Ressalte-se que esse livro aparentemente despretensioso revela um conjunto de hipóteses e chaves de leitura instigantes para leitores de todas as idades e experiências Buscando uma espécie de ponto de confluência entre as interpretações de Roberto Schwarz e José Guilherme Merquior, Valentim Facioli argumenta que a dimensão inovadora e revolucionária das Memórias póstumas é fruto da inventividade de um escritor que soube acionar toda uma tradição literária baseada no gênero cômico-fantástico para recriar a matéria brasileira. [End Page 189]

Ampliando o argumento de Schwarz, Facioli considera que não apenas a estrutura da narrativa, mas o próprio conteúdo do livro refletem os dilemas e contradições da sociedade brasileira Nesse sentido, para Facioli, Brás Cubas é a metáfora de um Brasil estrambótico e deslocado porque incapaz de reconhecer que suas verdadeiras raízes estavam na África (donde lhe vinham o trabalho e o capital, os dois pilares centrais da modernização), um país cujas elites não podiam e não queriam reconhecer seu Outro, instrumentalizando, ao invés, modernas teorias liberais européias para justificar e perpetuar um sistema social pré-moderno, atrasado e condenado pela própria Europa.

Esse universo social, que Facioli repetida e insistentemente qualifica de estrambótico e escandaloso, está exposto, denunciado, ridicularizado em Memórias póstumas, embora não de maneira óbvia ou panfletária A crítica é realizada através de um narrador tão volúvel, inconsistente e estrambótico quanto a própria sociedade escravocrata que o gerou (enquanto personagem) Aqui entra o argumento que Facioli vai buscar em Merquior, de que Machado de Assis, bebendo de fontes várias, cria um narrador não confiável (categoria mais ampla que, segundo ele, inclui o "narrador volúvel" de Schwarz) que se filia claramente ao gênero cômico-fantástico—um tipo de literatura nascido no século II com Luciano de Samósata, e que, dentre outras características, procura tratar humoristicamente graves questões metafísicas ao mesmo tempo em que brinca à vontade com os critérios de verossimilhança Para Facioli, é essa filiação à literatura cômico-fantástica que responde pela dimensão universalizante de Memórias póstumas, permitindo a uma obra que privilegia a matéria local e nacional, ser ao mesmo tempo uma reflexão sobre a fragilidade e a miséria humanas.

Complementando sua argumentação, Facioli apresenta a hipótese de que, em não havendo na narrativa de Memórias póstumas nenhum antagonismo social ou individual que faça sombra a Brás Cubas, seu verdadeiro antagonista vem a ser o próprio Machado de Assis, que através de recursos retóricos e textuais está constantemente desautorizando o discurso do seu narrador Assim é que Brás Cubas (e o Brasil) aparece ao leitor como um embuste, uma farsa, e o seu livro de memórias se configura enquanto processo de deseducação e deformação humanas, localizado no seio de um sistema social que ao gerar seres arbitrários, caprichosos (volúveis) e deslocados, só pode levar à ruína, à melancolia e ao aniquilamento (aqui se unem local e universal).

O convite de Facioli é o de que leiamos as Memórias póstumas enquanto narrativa híbrida, posto que situada entre o local e o universal, entre o real e o fantástico Ademais, gerada como narrativa em crise de um mundo em crise, Memórias póstumas deve ser entendido como um texto dialógico, que pede um leitor ativo, cr...

pdf