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Reviewed by:
  • A verdadeira história dos pássaros
  • Carlos Nogueira
Mãe, Valter Hugo . A verdadeira história dos pássaros. Matosinhos: Booklândia, 2009. Pp. 31. ISBN 978-989-628-133-5.

Os livros de Valter Hugo Mãe (Angola, 1971) destinados à infância e à juventude começam por seduzir pelo formato, pelas ilustrações e pela cor. As dimensões, com 16.5 por 24 cm, únicas ou muito raras no mercado editorial português, fazem de cada obra um objecto que apela a uma cumplicidade forte com o leitor. É este o caso de A verdadeira história dos pássaros, que articula consciência mítica, leis da natureza e estética: o vento, a personagem que desencadeia [End Page 555]a acção, consciente de si e do mundo, aparece como o responsável pela evolução de duas espécies genericamente designadas de "galinholas" e "passarocos"; e o texto, representação do interminável e sublime poema que é a Natureza, encerra em si uma ideia de sabedoria e progresso ecológico.

A verdadeira história dos pássarosrecorda-nos, com a expressividade da linguagem dos mitos, que a literatura é conhecimento e (re)invenção do mundo: "Um dia, num tempo já perdido da memória, o vento não suportou mais a solidão quando corria pelos ares a olhar para o mundo lá em baixo" (4). O título, à maneira dos folhetos de cordel que começam com o sintagma "a verdadeira história", é já predição de uma narrativa original. As ilustrações, também de Valter Hugo Mãe, o tratamento e a disposição dos signos tipográficos prolongam os sentidos do texto, que busca a essência do ser humano nas palavras e na Natureza.

A configuração mítica do relato, que apresenta a verdadeiraorigem de uma das mais singulares espécies de animais através da referência mitológica a outro elemento da Natureza (o vento), não deixa de colocar os leitores bem dentro de uma plenitude original que a ciência esclarece: a evolução das espécies e a função do vento e da gravidade no voo das aves: "De tanto calcular e observar, era muito fácil concluir que os animais mais pequenos, e até mesmo os mais delicados, talvez fossem os mais adequados para viagens pelo ar" (11).

A mitificação do vento e dos pássaros é um modo de gerar estranhamento em relação a uma evidência científica e de senso comum: os pássaros voam no e com o vento. Esse estranhamento dá a cada leitor a possibilidade de ver no mais (in)visível a complexidade e a simplicidade da vida na Terra; ao mesmo tempo, a partir da objectividade e da subjectividade das coisas da Natureza, o leitor é estimulado a compreender os enigmas da sua própria vida dentro da ordem natural e cósmica.

Metafísica e realidade, emoção e verdade afirmam-se na diegese e na linguagem, que, como nos outros livros de Valter Hugo Mãe, é despretensiosa, límpida e musicalmente sugestiva. A expressividade das palavras comunica naturalmentea expressividade da Natureza, e favorece um olhar estético e intelectualizado: esse olhar que nos liga à infância mais pura que é a da comunhão com a Natureza: "Quando se convenceu da sua melhor escolha, o vento desceu baixinho junto às ervas e começou a cutucar as criaturinhas com breves abanões" (16).

O vento e os pássaros não são apenas vento e pássaros. Recobre-os uma elevação própria de deuses ou de criaturas de deuses; a sua realidade faz-se daquele fantástico que é tanto mais sublime quanto mais existir no mais real. Esta paisagem poética, construída sobre uma paisagem real ocultada pelo olhar gasto, promove um olhar novo e intenso sobre o "fora" e o "dentro" da Natureza.

Nesta física, nesta essencialidade da Natureza, há, portanto, uma metafísica: na intemporalidade do vento, que contém a memória da origem do nosso universo, inscreve-se a origem dos animais que porventura mais cedo ligaram o ser...

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