In lieu of an abstract, here is a brief excerpt of the content:

  • Modernidade e tradição no "país do desconcerto":Uma leitura sociocultural de Memórias sentimentais de João Miramar
  • Fátima R. Nogueira (bio)

É preciso compreender o modernismo com suas causas materiais e fecundantes, hauridas no parque industrial de São Paulo, com seus compromissos de classe no período áureo-burguês do primeiro café valorizado, enfim, com seu lancinante divisor das águas que foi a Antropofagia nos prenúncios do abalo mundial de Wall Street. O modernismo é um diagrama da alta do café, da quebra e da revolução brasileira.

Oswald de Andrade1

Este trabalho divide-se em duas partes. Na primeira, proponho uma releitura de Memórias sentimentais de João Miramar (1924) que, centrando-se na relação dialética entre modernidade e tradição, estuda o desdobramento da mesma com outras percepções análogas, tais como espaço e tempo e as afinidades estabelecidas entre esses conceitos e os de memória individual e coletiva em suas correspondências com a história. Na segunda parte analiso as correlações de algumas construções estéticas mais representativas do modernismo no contexto político e sociocultural da época. Percebem-se essas relações no romance de Oswald de Andrade (1890-1954), principalmente, devido à notável capacidade do autor de plasmar literariamente as mudanças e as contradições de seu tempo.

Repercutem neste estudo algumas idéias de Calinescu e de Octavio Paz no que diz respeito ao movimento duplo da modernidade de invalidar uma tradição para criar outra moderna, que ocupará seu lugar.2 No caso específico do [End Page 45] modernismo brasileiro a relação entre modernidade e tradição foi amplamente estudada, sendo o movimento muitas vezes mal entendido como uma ruptura radical com a tradição. Ronald W. Sousa afirma que o romance de Oswald de Andrade desde seu início, com o prefácio de Penumbra, deixa-se imbuir pela tradição, permitindo uma leitura do modernismo "as circumscribed by tradition or, at minimum ultimately coordinated with it" (8).3 Seguindo essa mesma linha de pensamento, meu trabalho demonstra a complexidade da relação modernidade e tradição adquirida no modernismo brasileiro através de uma análise de Memórias sentimentais conectada com certos elementos da realidade sociocultural brasileira, os quais contribuíram para intensificar essa complexidade. No romance estudado observa-se que um forte desejo de inovação estética e políticosocial se canaliza—por meio da sátira à sociedade conservadora brasileira—em uma vertente crítica que deixa entrever nos interstícios da obra um confronto com formas socioculturais tradicionais.

No entanto, Oswald de Andrade não se opôs a toda forma de tradição.4 O alvo de suas críticas era o academicismo, representado pelo discurso parnasiano e naturalista que liderava nas preferências literárias do momento. Esta crítica obstinada visava o plano estético, ao mesmo tempo em que revelava uma interpretação de que este discurso estratificado e denunciador de um apego cômodo ao passado poderia ser um dos índices identificadores da sociedade brasileira. Desde aí, pode-se inferir que há ao menos três sentidos do termo tradição que se interceptam no romance: o de um desejo de retorno à ordem pretérita, o artístico e o popular. Percebe-se no romance estudado um ímpeto de respeitar e recorrer à tradição literária para renová-la. Essa tendência se revela, desde seu princípio, nas duas epígrafes que o abrem—um clássico da literatura nacional, O Uruguai (1779), de Basílio da Gama, e outro da literatura portuguesa, Arte de furtar (1744), de autor desconhecido. Assim, a visão do moderno perde de certa forma a característica de imediatismo que as vanguardas lhe conferiram, contrapondo-se ao antigo em todas as épocas e impulsionando à renovação, já que as duas inscrições enfocam-se no plano da criatividade e inovação literárias como elementos constituintes de toda grande obra de arte. Nesse sentido, o discurso de Miramar se apresentaria como tão moderno no momento de sua escritura quanto os discursos dessas obras que o precederam...

pdf

Share