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  • "Venha a sátira mordente":A sátira na poesia romântica portuguesa
  • Carlos Nogueira

No Romantismo português, a sátira social e a teoria da sátira não existem apenas no panfleto, na crónica ou no romance, género que se impõe de modo muito rápido no século XIX; existem também, e de maneira por vezes memorável e inovadora, na poesia de autores como Almeida Garrett, Faustino Xavier de Novais, Camilo Caste-lo Branco, José da Silva Mendes Leal e Guilherme Braga.

Na centúria oitocentista, a sátira encontra uma conjuntura – Liberalismo, liberdade de expressão e compromisso intelectual – que propicia o desenvolvimento das suas funções primordiais: a denúncia de erros e vícios pessoais e coletivos (Nogueira 195). De uma interpretação errada desta sua vocação tem resultado um dos mais graves prejuízos para o seu estudo: a sátira é vista apenas como um documento histórico que espelha a realidade social, sem que se considere, muitas vezes, a ideologia própria e esteticamente (de)formadora do satírico, e, por consequência, sem que se vislumbre o mais remoto sinal do que na sátira é conflito do sujeito consigo mesmo e complexidade de significados humanos e poéticos.

1. Almeida Garrett

Não convém, portanto, que nos iludamos perante a escassa atenção que críticos e historiadores da literatura têm dispensado à sátira romântica portuguesa, sobretudo no que diz respeito à modalidade em verso. É com razão que Maria Fernanda de Abreu escreve que não se tem "atribuído papel assinalável à sátira nas caracterizações ou balanços da produção romântica portuguesa" (526), certamente porque "o enquadramento filosófico que habitualmente" (526) apoia "as definições e exegeses da atitude romântica" (526) não favorece "a integração da sátira nessa atitude" (526): "E, todavia, os factores de mal-estar e desajustamento, pessoal e social, que [End Page 75] determinam, com frequência, o comportamento satírico tornam-no claramente compatível com aquele enquadramento filosófico" (526).

A inexistência, no verbete "sátira" da maioria dos dicionários de literatura portuguesa, de qualquer menção ao Magriço ou Os Doze de Inglaterra e a outros poemas satíricos de Almeida Garrett é uma prova desse menosprezo ou desse descuido. Assim se tem ocultado, num dos principais cultores do primeiro Romantismo, uma das formas de expressão literária e um dos itinerários que este autor, aliás, cedo associou à vocação militante da nova literatura. Determinada por elementos de intranquilidade pessoal e desinserção social, a atitude satírica acompanha Garrett desde os inícios do Romantismo português. O escritor exilado encontrou na sátira um alívio para o peso do combate político e, simultaneamente, uma linguagem de destruição das instituições despóticas do velho mundo.

O Magriço, inscrito num amplo e arrojado programa de revolução mental e social, participa na realização da nova conceção de literatura. Garrett vê nesta literatura impetuosa e social um lugar privilegiado de luta contra a hipocrisia das convenções, dos preconceitos e dos vícios sociais. Para ele, cada escritor romântico deve reconhecer-se infinitamente livre e ser um construtor da espiritualidade e do progresso ao serviço do povo.

Na descrição do próprio Garrett, trata-se de "um poema de um género caprichoso entre o Orlando de Ariosto e o D. João de lorde Byron" (10); um poema "excêntrico e indeterminado na sua esfera" (10), que "abraçava todas as coisas antigas e modernas, e ora filosofava austeramente sobre os desvarios deste mundo, ora se ria com eles; umas vezes se remontava às mais sublimes regiões da poesia do coração ou do espírito; outras descia a seus mais humildes vales a colher uma flor singela, a apanhar talvez às bordas do ribeiro a pedrinha, que só era curiosa ou extravagante" (10). As contrariedades que marcaram a criação e a publicação deste poema satírico fragmentário, equacionadas no prefácio que...

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