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  • Contracultura no Brasil–Infraturas
  • Frederico Coelho

Categorias de acusação

Já se passaram mais de quarenta anos desde que a palavra "marginal" come-çou a circular no campo cultural brasileiro. Usada como adjetivo para definir da qualidade material até o conteúdo político de manifestações ligadas ao cinema, às artes visuais, à poesia, à imprensa ou variáveis similares na música popular ("malditos"), tal uso da palavra aparece no final da década de 1960.1 Entre 1968 e 1972 suas práticas e representações proliferam no bojo de um processo mais amplo de estigmatização social que ocorria no país durante o auge de sua ditadura civil-militar. O "marginal" era, nesse circuito, uma representação ligada a trajetórias e trabalhos cujas marcas públicas e privadas desviavam do senso comum conservador do período. Um artista marginal podia ser branco, intelectualizado e parte da classe média urbana. Não era necessariamente sua condição de classe que marcava tal desvio, e sim seu comportamento, sua estética ou sua autodeclarada recusa dos padrões vigentes. É desse modelo brasileiro que partiremos para debater o tema da contracultura no país e seus desdobramentos em uma linguagem transgressora singular. Vale também, desde já, indicar que "contracultura" é outro termo ambivalente pelos usos feitos ao longo da história. Sua representação internacional, vinculada ao movimento hippie e às revoltas estudantis nos EUA e na Europa, tiveram ressonâncias específicas no cotidiano latinoamericano em geral e brasileiro em particular.

Ainda nos anos de 1970, o antropólogo Gilberto Velho se aproximou do tema do marginal cultural a partir da noção de "sistemas de acusação," isto é, estratégias socioculturais "mais ou menos conscientes de manipular e organizar [End Page 347] emoções, delimitando fronteiras" ("Duas categorias" 57). O antropólogo usa o termo "categorias de acusação" para demonstrar como, por exemplo, o "doente mental" ativa uma longa cadeia de significantes ao ser utilizado em determinados contextos sociais. Se pensarmos o termo "marginal" em seus usos de então–artista marginal, cinema marginal ou poeta marginal, por exemplo–veremos que apresentam um "alto poder de contaminação, nem sempre aparecendo isolada e explicitada" (Velho, "Duas categorias" 57).

Tais usos que adjetivam o artista, o cinema ou o poeta alimentaram ainda nos anos de 1960 a ideia de uma "cultura marginal." Eles surgem como estratégia autolegitimadora de trabalhos cujos princípios criativos experimentais e sua materialidade precária são necessariamente transgressores. Ao mesmo tempo, ser parte desse campo semântico "marginal" pode ser lido pela perspectiva de "categorias de acusação" que, por contaminação, abarcavam outros termos como drogado e subversivo. Entre 1968 e 1972, o uso de drogas e a militância política raramente estavam desvinculados do caráter "à margem" dos artistas e de seus trabalhos. Ao mesmo tempo, eram os próprios artistas que constituíam, em seus filmes, poemas, letras de música e trabalhos em geral, as representações da violência política, estética e comportamental do período. Basta pensarmos em declarações de Hélio Oiticica (discorrendo sobre anti-arte, marginais e heróis), nos romances de José Agripino de Paula (Lugar público, de 1965 e Panamérica, de 1967) ou em filmes como os de Ozualdo Candeias (A Margem, 1967), Julio Bressane (Matou a família e foi ao cinema, 1969), Andrea Tonacci (Bang Bang, 1970), Rogério Sganzerla (O ban-dido da luz vermelha, 1968), Neville de Almeida (Jardim da guerra, 1968), André Oliveira (Meteorango kid, o herói intergalático, 1969) e Ivan Cardoso (Nosferatu no Brasil, 1971). São imagens e palavras de bandidos, assassinos, pessoas armadas, monstros, prostitutas, vagabundos urbanos, vampiros, personagens que vagam por espaços abandonados, utilizam drogas, pregam o escracho social em pleno momento de ideologias ufanistas verde-amarelas. Em uma era de brutais modernizações desenvolvimentistas, um contingente significativo de intelectuais indicava uma atitude pré-punk e afirmavam um no future no país "condenado ao moderno."2

Outro ponto fundamental que sempre deve estar em debate quando falamos de "marginais" durante os anos de 1960 e 1970 são os suportes...

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