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  • Bestiário e discurso do gênero no descobrimento da América e na colonização do Brasil by Pedro Carlos Louzada Fonseca
  • Leopoldo M. Bernucci
Fonseca, Pedro Carlos Louzada. Bestiário e discurso do gênero no descobrimento da América e na colonização do Brasil. Bauru, SP: Edusc, 2011. 400pp.

Por ser o tipo de obra cada vez mais rara entre nós, o erudito e rigoroso estudo de Pedro Carlos Louzada Fonseca, Bestiário e discurso do gênero no descobrimento da América e na colonização do Brasil, não deve ser o único motivo para se celebrar em nossas letras; celebramos o livro também pelo alto mérito de sua vasta pesquisa. Obra rara, porque este livro, consagrado ao universo medieval e aos primeiros anos da chamada Idade Moderna no nosso meio acadêmico, extrai dessas duas épocas importantes subsídios para a compreensão de um imaginário que terminou moldando as grandes conquistas seculares e religiosas no Novo Mundo. Só este último fato já é espantoso, se pensarmos que algumas das lendas medievais mais tarde consideradas pela teratologia e a demonologia da Idade Média foram tão bem disseminadas e aceitas a ponto de, atravessando o Atlântico, poderem sobreviver durante séculos até pelo menos os primórdios do XIX na América. A ampla investigação que o autor realiza deixa ver o seu hábil manejo de fontes clássicas, quanto aos bestiários e às histórias naturais, e também a sua familiaridade, não menos impressionante, com todo um acervo de literature de viagens.

A meta principal de Fonseca, segundo a sua Introdução, é demonstrar como “a visão da América correspondeu a uma nova elaboração de antigas formações ideológicas e imaginárias do viajante medieval” (24), informadas pela tradição bestiária e pela representação do feminino ligado a entes mitológicos. O seu estudo se divide em seis elegantes capítulos, cuja linguagem está plenamente a serviço da clara exposição das ideias e de um requintado aparato teórico, transformando este livro em objeto de prazer durante a sua leitura.

O Capítulo I preludia o contexto conceitual que põe em evidência as teorias sobre a diferença entre natureza animal e natureza humana, privilegiando, logicamente, a última.

Argumentará mais tarde o livro (Capítulos III e IV) as consequências deploráveis do inadequado uso que as crônicas fazem de tal dicotomia para o entendimento filosófico do ser ameríndio. Se bem as discussões neste capítulos girem em torno das deformações naturais, concebidas como monstruosidades, Fonseca nos alerta para outro tipo de leitura mais contemporizável, como a Etymologiae, [End Page 135] de Santo Isidoro de Sevilha, que na linha de Plotino estaria avançando a teoria da harmonia do cosmos abraçada por Aristóteles a partir de Platão. Segundo esta, e encalçadas na teologia do santo espanhol, “as anomalias, as monstruosidades e as perversões naturais faziam parte do plano divino da Criação” (34). Com este contraste de interpretações tão radicais, o capítulo nos oferece algo mais, porque desmitifica a falsa noção de uma Idade Média marcada por um pensamento monolítico e inquebrantável no que diz respeito a como eram interpretados as imperfeições da natureza e, principalmente, os seres estranhos que a habitavam. No Capítulo II, de modo convincente, Fonseca apresenta a seu leitor o cenário medieval em que a figura feminina, a despeito de ser vilipendiada e demonizada, despertava ainda fascínio e atiçava a imaginação de escritores tão díspares como Santo Agostinho e Chaucer. Assim, o capítulo é um excelente exemplo de como a misoginia não era decorrente de meros exercícios retóricos, como alguns textos podem nos levar a crer, mas, concretamente, de uma visão calcada na tradição falocêntrica dominante e explorada para fins políticos, sociais e de poder.

O Capítulo III inicia com uma discussão em torno do pensamento medieval atualizado nas crônicas...

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