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  • A sátira barroca e a poesia satírica de Gregório de Matos
  • Carlos Nogueira

1. O ideal da sátira em Gregório de Matos e nos tratados poéticos do Barroco português

Apesar do ludismo e da obscenidade que caracterizam a sua sátira, Gregório de Matos não rejeita uma visão do devir da História e uma concepção de Homem que contraria a mundividência e a corrupção vigentes na época. O poeta delimita uma imago pública de si enquanto pessoa do mundo fenomenal que substitui a Lei ético-jurídica (que o sistema de justiça, por inépcia, não aplica) pela lei da sátira em verso. As leis do género satírico alimentam-se, legitimamente, segundo Gregório de Matos, de uma lei moral justa e de leis poéticas próprias. Veremos neste artigo em que medida o poeta põe em prática este pressuposto.

Para preservar o mais possível a sátira barroca da má reputação do género satírico, associada às formas mais primitivas de invectiva não-literária, os teorizadores prescrevem o máximo comedimento no uso do cómico e do satírico. Não se nega à sátira o direito à punição exemplar pela via do ridículo, mas não se admite o recurso ao apontamento insultuoso e cru, literal. A subtileza do conceito não é só um dos princípios essenciais da poética barroca; deve também ser a regra essencial do género satírico, a que se atribui uma função de denúncia correctiva e moralizadora.

As leis, curtas e incisivas, divulgadas pelo espanhol Baltasar Gracián (Belmonte de Gracián, 1601 – Tarazona, 1658), autor do paradigma teórico fundamental do barroco peninsular, Agudeza y Arte de Ingenio (1642), servem de medida para avaliarmos o que, antes e depois, circula sobre a sátira em textos críticos e teóricos. [End Page 193]

Gracián aconselha sempre, através de exemplos oportunos, com vista a uma codificação eficaz do género, a obediência a critérios de sobriedade e proporção. No “Discurso XXVI”, subordinado ao tema “De la agudeza crítica e maliciosa”, diz, a propósito de uma décima de Manuel Salinas (“Todas tus amigas son/ Las más viejas y más feas,/ Con ellas vas y paseas,/ Ya se sabe tu intención./ Éstas en toda ocasión/ Contigo gustas traer,/ Para con eso poder,/ Fabula, siempre engañosa,/ Entre feas ser hermosa,/ Y entre viejas niña ser”): “De modo que todo el artificio de esta agudeza consiste en descubrirle la mali-cia artificiosa al que obra, y sabérsela ponderar” (256). Imediatamente a seguir, no “Discurso XXVII”, em que se reflecte acerca “De las crisis irrisorias”, afirma que “Es tan fácil esta agudeza, cuan gustosa, porque sobre la ajena necedad todos discurren y todos se adelantan antes el convicio [injuria o improperio] que al encomio, pero el ingenioso por naturaleza dobla su intención”. Esta proposição é ilustrada com um epigrama de Bartolomé Leonardo:

El metal sacro en Julia Celsa suena,/ Émulo de proféticos alientos,/ Que nos previene a insignes movimientos/ Con proprio impulso y sin industria ajena./ Ofusca el sol su faz limpia y serena,/ Arrojando esplendores macilentos,/ Y sacudido el orbe de portentos,/ Se aflige y brama en su fatal cadena,/ Y mientras que el horror de lo futuro/ Los ánimos oprime o los admira,/ Tú, Cremes, obstinado en tus amores,/ Remites a los cetros la gran ira,/ Y adulas a tu Pánfila con flores,/ Deshonesto, decrépito y seguro.

(265–266)

Um pouco mais à frente, sem nunca deixar de recorrer a exemplos, o autor acrescenta: “Satirízase en general con la misma sutileza y gracia, y nótanse las necedades comunes, que no es la menos principal parte de la sabiduría prudente” (272). Mais: sem cair na vulgaridade, “Pondérase con mucha sal el desacierto, cuando desciende de un extremo a otro. Físgase [hacer mofa] Marcial de Gelía, que mientras andaba escogiendo maridos, y al principio asqueaba...

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