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Reviewed by:
  • A confissão da leoa by Mia Couto
  • Carlos Nogueira
Couto, Mia. A confissão da leoa. Lisboa, Portugal: Caminho, 2012. Pp. 270. ISBN 978-972-21-2567-3.

Escrito a partir de elementos factuais que o próprio autor indica na “Explicação inicial” (9–10), o romance A confissão da leoa retoma e prolonga os temas, os motivos e a estilística que fazem a especificidade da ficção de Mia Couto.

A ação decorre em Kulumani, no norte de Moçambique, onde leões caçadores de humanos trazem a morte e o medo à comunidade. Há dois narradores de primeira pessoa, Mariamar e Arcanjo Baleiro, cujas vozes alternam até ao final. O livro está estruturado em dezasseis capítulos, oito para cada um dos narradores, cuja designação compreende quer um título genérico numerado entre parêntesis, “Versão de Mariamar” e “Diário do Caçador”, quer um título específico que antecipa o conteúdo (“A notícia” ou “O anúncio”, por exemplo).

A intriga desenvolve-se a partir da morte de Silência, irmã mais velha de Mariamar, e do conflito que se instala entre o pai, Genito Serafim Mpepe, e a mãe, Hanifa Assulua. A confissão da leoa tem como eixo diegético a caça aos leões desencadeada pelos “do projeto”, da “empresa” (28), mas este não é propriamente um romance de ação. Apesar de as linhas diegéticas se estruturarem numa intriga coesa e estruturada, é antes de mais na intimidade das personagens que se constitui a matéria romanesca. Acompanhamos não só Mariamar e Arcanjo Baleiro mas também uma série de personagens cuja caracterização é feita através de ações, de diálogos e do que sobre elas nos dizem os narradores.

Mariamar e Hanifa Assulua começam por se revoltar contra um espaço físico, Kulumani, que é, antes de mais, um espaço social que as aprisiona e impede de viver em liberdade. Daí que, no incipit, Mariamar afirme: “Deus já foi mulher. . . . Nesse outro tempo falávamos a mesma língua dos mares, da terra e dos céus” (15).

O início do romance, como, aliás, toda a narrativa, é uma celebração da mulher e, ao mesmo tempo, perante as contradições do presente em relação ao feminino, um lamento: “O meu avó diz que esse reinado há muito que morreu” (15). Nesta constatação de um fim de um mundo existe, contudo, uma esperança de mudança, que ao longo do romance se concretizará na revolta destas mulheres.

Todos os outros temas e motivos de A confissão da leoa, do amor e da solidão à morte e à loucura, à guerra e à política, se ligam a este grande tema da opressão do feminino pelo masculino. Num ambiente sociocultural e religioso em que convivem tradições africanas e heranças europeias, da mulher espera-se obediência incondicional ao marido em tudo o que se relaciona com a vida familiar e social. No primeiro capítulo, Mariamar e Hanifa Assulua submetem-se, apesar da revolta que iniciam: “Num instante, estava refeita a ordem do universo: nós, mulheres, no chão; o nosso pai passeando-se dentro e fora da cozinha, a exibir posse da [End Page 430] casa inteira” (29). Mas em todo o romance se assistirá à continuação desta insurreição, que nos chega através de um discurso e de soluções diegéticas que unem os espaços da vida e da morte, do humano e do animal, do visível e do invisível.

O realismo mágico atravessa todo o romance e coloca o leitor entre vários mundos e diversos tipos de compreensão do real e do sobrenatural. Mia Couto dá-nos a ver a intimidade de personagens cuja relação com o mundo se estabelece a partir do diálogo entre a mitologia e as crenças moçambicanas, por um lado, e o olhar e a percepção individuais, por outro.

Para o leitor e para as personagens que interagem com Mariamar, Hanifa Assulua e o av...

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