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O DOM E ADANAÇAO: AiNTROPOFAGIA E DOENÇAS (SUPOSTAMENTE) EMERGENTES ______________FRANCISCO INÁCIO BASTOS______________ Fundaçâo Oswaldo Cruz 1. O paradigma antropofágico: idas e vindas A presença ou nâo de práticas antropofágicas ao longo de momentos diversos da historia humana merece uma crónica específica por parte dos sociólogos da ciencia — nao o sendo, permito-me apenas um breve exercício. Eficaz símbolo da barbarie aos olhos contemporáneos, a propria existencia destas práticas tem sido objeto de ácido debate por parte de arqueólogos, antropólogos e outros estudiosos. A questäo tem oscilado desde a mais radical refutacáo até a certeza de comprovacáo definitiva, em diversas latitudes e momentos históricos. Quando o arqueólogo Christy Turner, da Universidade do Arizona, publicou seus achados acerca de práticas antropofágicas por parte de indios norte-americanos (Turner, 1970), seus resultados foram recetados com ceticismo, quando nâo desconfiança (Gibbons, 1997). A idéia ent äo vigente de uma vida comunitaria harmónica e pacífica por parte dos americanos nativos näo condizia com uma imagem täo crua de confuto e violencia, tendo-se em mente que, segundo a nossa perspectiva, a antropofagia é assim compreendida. Transcorridas quase tres décadas, parecem se avolumar as evidencias de que as práticas antropofágicas seriam mais fréquentes, mais disseminadas no espaço geográfico e de maior permanencia no tempo do que se supunha. Enquanto os estudos americanos acreditam que as práticas antropofágicas atravessariam quatro séculos de historia em seu territorio (Gibbons, 1997), estudos europeus recuam nada menos que 800.000 anos para situar os primeiros vestigios do canibalismo, afirmando mesmo que ele teria sido praticado pelo Homem de Neandertal (Defleur et alii, 1993; Fernández-Jalvo, 1996). O revival dos estudos acerca do canibalismo tem procurado comprovar igualmente sua existencia em civilizaçoes bem mais recentes, como os Astecas ou os habitantes das linas Fidji. Christy Turner atribuí a preconceitos contemporáneos a näo admissäo de que a antropofagia é parte inseparável da historia humana. Para Turner, parte mesmo da "natureza humana" (Apud Gibbons). 01999 NUEVO TEXTO CRITICO Vol. XII No. 23/24, Enero a Diciembre 1999 370FRANCISCO INACIO BASTOS 2.Razöes da antropofagia: para além (ou aquém) do dom e da danaçâo A Antropología clássica, como afirma James Frazer, em The Golden Bough (Frazer, 1983), ressalta na antropofagia seu caráter ricamente simbólico , enfatizando seu aspecto ritual. Portanto, a devoraçâo de um guerreiro serviría a propósitos mágicos, de natureza homeopática —pela reduplicaçao das qualidades do devorado naqueles que o devoram— e contagiosa —a idéia de que a proximidade entre o devorado ou seus pertences e os convivas do banquete antropofágico permitiría a passagem, por contagio, dos seus dons. Segundo Doran (1994), este teria sido o destino do grande navegador inglés, James Cook. Seu corpo teria sido desmembrado e ingerido pelos nativos do Havaí em sinal de respeito e veneracáo. Apesar de seu conteúdo metafórico, aos olhos dos especialistas em símbolos do mundo contemporáneo — antropólogos e demais cientistas sociais, além de críticos literarios— , a antropofagia parece ter servido igualmente a fins mais prosaicos e materials, tais como favorecer a sobrevivencia biológica de uma comunidade, contribuir para a reduçâo do contingente da comunidade rival ou demarcar territorios (Gibbons, 1997). Assim, além de um sentido ritualístico de incorporaçao de dons do morto canibalizado, como a coragem e o gosto pelos empreendimentos bélicos, as práticas antropofágicas teriam objetivos práticos e mesmo vinculados ao puro prazer gustativo. No primeiro caso, a disputa por bens escassos em um mundo em que ainda näo haviam sido estabelecidos criterios propriamente "históricos" para sua apropriaçâo, como as linhagens reais ou a posse do capital. No segundo caso, a possibilidade de degustar um "bom petisco", como veremos mais adiante... 3.Kuru: um mal à procura de uma causa Tem ganho força em anos recentes a conceituaçâo de "doença infecciosa...

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