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VIAGEM ANTROPOFÁGICA _______________IVO BARBIERI________________ Universidade do Estado do Rio de Janeiro Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas. Manifesto antropófago, 1928. Quando o capitäo ordena que Nueva Fidelidad zarpe sem destino, sem carga e sem passageiros, com o único propósito de näo mais tocar em nenhum porto, a bandeira amarela da cólera inexistente a bordo flotando de júbilo en el asta mayor, transportando somente a paixäo indómita e tardía do casal Florentino Ariza e Fermina Daza, inicia-se uma viagem de aventura sui generis, fora de qualquer parámetro de afericäo habitual. Transgredidas as fronteiras impostas pelos tratados de navegaçao, negados os limites de tempo, lugar, idade e categoría social, Nueva Fidelidad transborda hiperbólicamente todo espaço demarcado para projetar-se nas aguas do mito. Esse epílogo de Amor en los tiempos del cólera (Gabriel García Márquez, 1985) assemelha-se ao de Serafim Ponte Grande (Oswald de Andrade, 1929), onde a figura caricata de Pinto Calçudo, capitäo ad hoc de El Durasno e comandante improvisado de uma revoluçâo puramente moral, proclama peste a bordo e ordena que a nave prossiga navegando pelos sete mares sem ancorar em nenhum cais. Essa semelhança permite indagacóes a respeito do que estaría na base de täo flagrante analogía em duas narrativas, separadas pela distancia cronológica de quase meio século e, sobretudo, diferenciadas por acentuada divergencia de concepcäo e realizacäo ficcional. Näo me parece, porém, relevante nem sequer pertinente desencadear a busca de influencias ou afinidades de temperamento enraizadas em fontes comuns, que pudessem explicar algum improvável parentesco literario entre o romance de Garc ía Márquez e o de Oswald de Andrade. Mais instigante, com certeza, seria interrogar certas matrizes culturáis profundas que alimentaram ontem e estariam ainda fecundando hoje vertentes vivas do pensamento e da invençâo poética neste lado do continente americano. Tal indagaçao necessariamente teria de atravessar a superficie do texto e estabelecer conexöes com diferentes tópicos que, aflorando aqui e ali, configuram traeos decisivos da fisionom ía histórica deste subcontinente. Atuantes desde os momentos inaugurais de nossa travessia, esses traeos têm origem no choque resultante do encontr ó das culturas transplantadas com as adversidades do novo meio. As narrativas de viagem säo talvez a forma mais visível desse iceberg causador de©1999 NUEVO TEXTO CRITICO Vol. XII No. 23/24, Enero a Diciembre 1999 222________________________________________________________________rVO BARBIERI estranheza e confuto. O tema incluí tanto as viagens históricas de descoberta , œlonizaçâo e pilhagem quanto exploracóes científicas e viagens imaginarias cujos tópicos dramatizados —tempestades, naufragios, derrotas, desaf íos e glorias— descrevem vicissitudes täo loucas e täo estranhas quanto subcas que lemos nas páginas fináis de Serafim Ponte Grande e de El amor en los tiempos del cólera. Antes, porém, de enveredar por esse caminho, convém determinar primeiro as similaridades surpreendidas nos dois epílogos ácima referidos. Além do aspecto formal da viagem sem-fim e do sentido de rebeldía contra a moral e os bons costumes, contra as convençôes e as normas da sociedade hierarquizada, ambos celebram o estado de liberdade anárquica assentada no principio do prazer e do ocio. Sob esse prisma, tanto El Durasno quanto a Nueva Fidelidad säo figuras metonímicas de estágios sociais futuros, somente possíveis mediante retorno ao passado e recuperaçâo de virtudes sufocadas ao peso de coerçoes jurídicas e moráis que afrontam a natureza e comprometem a felicidade do ser humano. O ideal antropófago näo propöe, no entanto, um retorno puro e simples ao homem natural cuja concepçâo, proveniente do Renascimento, ilustrada pelo Iluminismo e nacionalizada pelo Romantismo, passa pelo crivo feroz de uma vanguarda agressiva. A proposta subjacente a todos os tópicos do Manifesto antropófago (1928) é a de uma radical transformaçao que atingisse todos os níveis de atividade e convivencia social. E é nessa perspectiva que o epílogo do Serafim...

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