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QUANLX) OS BARBAROS SOMOS NOS ________MARIA HELENA ROUANET_______ Universidade do Estado do Rio de Janeiro Enfim, é coisa bestial, e é certo que um deles me confessou ter comido da carne de mais de 200 corpos, e isto tenho por certo, e baste. Amerigo Vespucci, "Carta a Lorenzo di Pierfrancesco di Medici" (1502) Mentiste, que um Tupi näo chora nunca E tu choraste!... parte, näo queremos Com carne vil enfraquecer os fortes. Gonçalves Dias, "Y-Juca-Pirama", V. Nâo é de hoje que o antropófago circula com alguma constancia pelos textos ocidentais. Quase sempre, porém, metafóricamente. Ao passo que o canibalismo efetivo —cuja existencia histórica vem sendo até questionada nos días de hoje— deve ficar bem afastado do leitor, por medida de precau çao. Esses povos e seus costumes bárbaros podem freqüentar, com relativa liberdade, os relatos daqueles viajantes täo pouco evoluídos dos primeiros tempos dos descobrimentos, ou as referencias enciclopédicas da Europa iluminista e pós-iluminista, ou mesmo, em tempos mais recentes, a patología das personagens hollywoodianas... Contanto que se mantenham as dévidas distancias pois, afinal, como escreve Pierre Chaunu, em seu prefacio a Le Cannibale, de Frank Lestringant, essa prática "transgride (literalmente) o mais absoluto dos interditos. (...) Nao comerás a ti mesmo (...), näo comerás o teu semelhante" (1994, p. 19). Neste sentido, seria quase de se esperar que antropófagos e canibais tivessem presença marcante em manifestos de Vanguarda, uma vez que faz parte das regras do jogo dos grupos aos quais se atribuí tal designaçao provocar o choque em seus leitores ou espectadores. Como ocorre com outros tantos interditos, este será um tema privilegiado por aqueles que pretendem esbofetear o gosto do público ou, como escreve Benedito Nunes, um excelente "meio de agressäo verbal" em termos da "retórica de choque do Futurismo e do Dadaísmo" (1979, p. 14). O que se tem, ai, seria umafuncionalidade cultural da antropofagia; mas tal funcionalidade, longe de se limitar à proposta de choque das Vanguardas , tem acompanhado as referencias a essa prática desde que ela despontou como tema nos textos ocidentais. No entanto, para refletir a seu respeito 01999 NUEVO TEXTO CRITICO Vol. XII No. 23/24, Enero a Diciembre 1999 84______________________________________________MARIA HELENA ROUANET deve-se, por um lado, desvincular a noçâo de retórica da conotaçâo de verbosidade geralmente desprovida de sentido efetivo, conotaçâo esta que lhe é atribuida, de forma dominante, pelo pensamento da Modernidade. E, por outro lado, deve-se recuperar a relaçâo necessaria entre essa techné e a no- çâo básica de estrategia que visa a uma eficacia discursiva. Nâo se pode, por certo, esquecer que as funcóes emprestadas à figura emblemática do caníbal passaram por diversas variacóes ao longo dos cinco séculos que se seguiram ao descobrimento da América. No entanto, pode-se apontar, ai, uma invariante, presente desde o diario de viagens de Cristóvao Colombo até a formulaçâo adotada por Chaunu para definir as razóes do tabu que cerca a antropofagia em nossa cultura. Trata-se da delimitaçâo das fronteiras entre a semelhança e a diferença, ou seja: a figuraçâo do outro. Nas palavras de Anthony Pagden, "os antropófagos (...) têm desempenhado o seu papel na descriçâo das culturas nâo-européias, desde que o primeiro grego se aventurou pelo lado ocidental do Mediterráneo" (1986, pp. 80-81; grifos meus). É assim que o caníbal vai servir à estrategia discursiva de Montaigne para instaurar a relatividade das diferenças percebidas pelo ponto de vista do eu. Como teria feito Pirro diante da impecável organizaçao do exército romano com que se defrontava, o autor dos Essais afirma, sem qualquer hesitaçâo, "que nao há nada de bárbaro ou de selvagem [nesses indígenas da América do SuI]", "a nao ser o fato de que chamamos barbarie tudo o que nao faz parte de nossos costumes" (Livro I, Cap. 31). Pelo prisma do absoluto da verdade revelada, o mesmo caníbal serviría à estrategia de dois contemporáneos...

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