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  • A Experiência da Ficção1
  • João Gilberto Noll (bio)

Meu primeiro encantamento artístico deu-se com a música. E não com a palavra. Talvez tenha vindo daí o fato de eu me considerar um escritor de linguagem e não propriamente de tramas e assuntos. O que me leva ao enredo de uma novela é a senda que a linguagem vai abrindo no decorrer do ato da escrita. Assim, a escrita se constitui no atrito com o instante. Na luta às vezes árdua para povoar o vazio.

Geralmente os inícios de minhas escritas são meros aquecimentos, um tatear no escuro. Quando chego ao término volto à introdução para removêla dali e refazê-la de uma forma mais congruente com o restante da narrativa. O início deixa de ser exercício para se tornar efetivamente a abertura da trama. Vejo nesse “método” a linguagem como condutora para os dramas humanos que vão se revelando pouco a pouco ao longo de minha ficção. Uma música a princípio disparatada que a partir de um determinado ponto começa a encarnar de fato o tema. Tudo porque o que move a escrita em mim é o inconsciente, e não tanto o domínio que eu eventualmente possa ter sobre uma matéria ficcional.

Quando começo a escrever um romance não sei exatamente onde ele vai dar. Imagino empolgado o trabalho do músico. Ele não materializa idéias –, abstraindo-se dessa assertiva, é claro, a letra das canções. A literatura narrativa, por valer-se da construção linguística, um tanto mais conceitual, gera- se com um teor mais intelectivo, menos instintivo, quando se a compara, por exemplo, à linguagem essencialmente física da dança. Ao iniciar o meu contato mais íntimo com a leitura da palavra artística, a minha atenção corre mais solta sobre a poesia do que a prosa. Justamente pelo fato de que o poema, assim como a música que não seja eminentemente descritiva em sua própria constituição instrumental, possuem uma referencialidade mais [End Page 1] aberta relativa às coisas, não se reportam tão diretamente ao mundo mas à sua própria formulação –, essa, sim, estruturante de um eventual objeto de narrativa, força motriz que é de um processo gradativo de significação.

É dessa propulsão da linguagem que se instaura o tema em constante desnudamento, conforme a incisão das palavras em sua função de quase bisturi na extração das urdiduras até aqui secretas do enredo. Esse mecanismo empresta ao trabalho algumas surpresas, pois o que transparece na linguagem é engendrado nas sombras do inconsciente, qual uma usina subterrânea que só saberá de si no calor de uma sintaxe impressa no vazio do branco. Eu perguntaria: essa tendência pulsional diante da criação não seria inerente antes de tudo à música e à poesia, campos de ação onde a linguagem via-de-regra predomina sobre a reportagem de conteúdos imediatamente reconhecíveis?

Aqui não poderíamos deixar de pensar também na compulsividade do ato criativo de certos pintores expressionistas abstratos, que projetavam na tela impulsos cegos das mãos, deixando para um segundo momento a “compreensão” estilística do seu produto em progresso ou já concluído. Mas isso tudo pode estar presente de um jeito ou de outro nas narrativas literárias, esse gênero comumente em prosa, legítimo descendente da História, da visão episódica da aventura humana. Sou eu mesmo um romancista e contista, cujo trabalho, no entanto, é carreado para o vazio do branco através de veios submersos, mais acostumados com o leito da linguagem do que dos fatos. Os fatos, tanto os crus como os estimulados por nada mais que um sopro rítmico, os fatos aparecerão, sem dúvida, pois que sou um ficcionista. Mas, em meu exercício, a força do narrado não vem tanto da mensagem dos assuntos em si mesmos quanto da voz que narra —, às vezes, em um único livro, ora em primeira, ora em terceira pessoa.

É como se eu...

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